Arquivos diarios: 31/05/2017

AS AMIZADES PERIGOSAS (X)

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               Se qualifico como “perigosas” as amizades sartrianas que vou referir de seguida, nao é apenas porque qualquer amizade seja perigosa, já que conduz ao abismo ou á alegria, mas porque os casos essenciais que se vao relatar brevemente representam um avanço ou um retrocesso na formaçao de Sartre, da sua literatura, da sua filosofia.  Trata-se de Paul Nizan e de Maurice Merleau-Ponty: a eles dedicará algumas das mais belas páginas da sua literatura.  Comecemos por Nizan, que conhece no liceu parisiense Henri IV  e de quem só se separará com a morte deste, na batalha de Dunquerque, em 1940.  Nao se trata de um amigo qualquer, Sartre homenageará várias vezes esta amizade brusca e tatalmente interrompida. (…) depois de evocar os intermináveis passeios em que ele e Nizan se perdiam pelas ruas de Paris na juventude de ambos, sem ânimo nem orientaçao, simplesmente pelo prazer de conversarem e de se divertirem, escreve:  “Era Nizan, calmo e pérfido, encantador. Era assim que eu o amava”  E nas conversas com Simone de Beauvoir, ao recordar a etapa do Liceu, confessa que eram “amigos íntimos”.  A sua relaçao é emocionante e surpreendente. Sao tao proximos um do outro que trocarao de identificaçao, assumiriao com humor e riso a identificaçao do outro. (…) Estávamos ligados a tal ponto que nos confundiam um com o outro;  Léon Brunschvicg, em junho de 1939, encontrou-nos aos dois em casa do editor Gallimard e deu-me os parabéns por ter escrito “Os Caes de Guarda” (…)  Essa confusao durava há dezoito anos, tinha acabado por se converter no nosso estado social e acabámos por aceitá-la.  De 1920 a 1930, estudantes de liceu e depois da universidade, ninguém nos distinguia. (…) Têm uma vida louca e jubilosa.  Assim pretende retratá-los Cohen-Solal:  “Um silencioso e o outro estridente, um elegante e o outro desarranjado, um calmo e o outro violento; assim se manterao, complementares e diferentes até 1927.”  Dar-se-á um afastamento transitório quando os dois acabam os estudos de Filosofia na École, Sartre inicia a sua breve carreira académica no Liceu de Le Havre e Nizan parte para Aden. (…)  Há uma segunda amizade perigosa. Merleau-Ponty, uma das mentes privilegiadas da filosofia do século XX, (…)  Sartre concluiu o texto que lhe dedicou da seguinte forma:  “Para terminar, direi que esta longa amizade, nem construída nem destruída, abolida quando renascia, permanece em mim como uma ferida indefinidamente reaberta”. (…) Sartre começa a envolver-se no imediatismo político e sobretudo nas vicissitudes da política partidária.  Merleau-Ponty ensina-lhe muito, guia-o; nao se trata da amizade enlouquecida que se estabelecera com Nizan, mas Merleau-Ponty revela-lhe a precisao do marxismo para construir uma análise do real, da situaçao – nos termos sartrianos – e, por outro lado, chama-lhe a atençao para a dolorosa ligaçao histórica entre o projecto político e os seus efeitos nem sempre aceitáveis – embora necessários – , mas que convém ultrapassar em virtude de uma revitalizaçao do sujeito histórico-revolucionário.  (…)  No entanto, a verdade é que, mesmo afastados, continuam a sentir-se os dois optimistas fundadores de “Les Temps Modernes”.  No ano seguinte, 1956, encontram-se em Veneza.  Na verdade, está tudo preparado para uma reconciliaçao que so foi impedida pela morte de Merleau-Ponty em 1961.  A inquietaçao tinha tendência a desaparecer –  Nasceu outro sentimento; a benevolência -, esta afeiçao desolada, ternamente fúnebre, aos amigos esgotados, que se afastaram até nao terem mais em comum que a sua disputa, que um belo dia acaba por já nao ter razao de ser. (…)  As amizades perigosas deram os seus frutos.

J. L. RODRIGUEZ GARCIA