Arquivos diarios: 25/05/2017

JEAN-PAUL SARTRE (VI)

.

               Em “As Palavras”, Sartre é categórico e cruel:  Jean-Baptiste “apoderou-se desta rapariguinha desamparada, casou com ela, fez-lhe um filho rapidamente, eu, e tentou regugiar-se na morte”.  Algumas páginas á frente reconhecerá que a morte do pai “foi o grande acontecimento da sua vida”. Porquê o grande acontecimento da sua vida?  Sartre responderia imediatamente a seguir a esta sentença desapiedada:  Como manda a regra, nenhum pai é bom; nao nos queixemos dos homens, mas do laço de paternidade, que está podre. (…) Se tivesse vivido, o meu pai teria caído em cima de mim com todo o seu peso e ter-me-ia esmagado. (…)  Foi bom ou mau?  Nao sei, mas aceito com gosto o veredicto de um eminente psicanalista: nao tenho “Superego”.  A referência é fundamental porque marca o alcance da liberdade na filosofia sartriana. De facto, refere-se a viver e agir á margem das imposiçoes familiares e sociais, nessa atmosfera de liberdade absoluta que pouco depois encontraria nas páginas de Nietzsche, que encarnarao as suas personagens literárias e na qual procurará uma âncora filosófica nas obras editadas a partir da década de 40.  Solitário, fechado na parisiense casa da rue Le Goff, do avô materno, o menino Sartre crescerá entre livros, silêncios e os absorventes cuidados de Anne-Marie, mae excessivamente protectora, a quem o menino nao reconhece como mae, mas como uma “irma mais velha”.  Um dia – tinha sete anos – o meu avô nao aguentou mais: deu-me a mao e disse-me que íamos passear.  Mas mal dobrámos a esquina meteu-me no barbeiro e disse-me: “Vamos fazer uma  surpresa á tua mae.”  Eu adorava surpresas. (…)  Em suma, vi com agrado os meus caracóis caírem ao longo da toalha branca que tinha á volta do pescoço e chegarem ao chao, inexplicavelmente sem brilho; voltei com o cabelo gloriosamente rapado.  É fácil imaginar o desgosto da mae.  A aceitaçao do pequeno de cabelo rapado implica uma dura mas inevitável liçao. (…)  A vivência da “fealdade” nao é apenas a descoberta de uma deficiência física: será interiorizada por Sartre como marca da individualidade humana, cuja existência estará marcada pela irreductibilidade em relaçao ao outro, pela consideraçao de que nao existe cópia do “Eu”, já que toda a existência tem uma peculiaridade extrema.  Como veremos mais á frente, esta ideia deverá ser reformada ou parcialmente corrigida em busca de uma semelhança que permita a conformaçao colectiva e, consequentemente, a práxis política. (…)  Há um terceiro acontecimento infantil de interresse biográfico.  O menino Sartre, isolado e introvertido, rodeado de livros, pó e murmúrios, encontra um feliz ensimesmamento na leitura.  “Comecei a minha vida como, sem dúvida a acabarei: no meio dos livros”, recorda e promete.  De facto, assim será.  E atençao a este belíssimo fragmento: Nunca esgaravatei a terra nem procurei ninhos, nao fiz ervários nem atirei pedras aos pássaros, mas os livros foram os meus pássaros e os meus ninhos, os meus animais de estimaçao, o meu estábulo e o meu campo; a biblioteca era o mundo preso num espelho; tinha a espessura infinita, a variedade, a imprevisibilidade.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA