Arquivos mensuais: Maio 2017

AS AMIZADES PERIGOSAS (X)

.

               Se qualifico como “perigosas” as amizades sartrianas que vou referir de seguida, nao é apenas porque qualquer amizade seja perigosa, já que conduz ao abismo ou á alegria, mas porque os casos essenciais que se vao relatar brevemente representam um avanço ou um retrocesso na formaçao de Sartre, da sua literatura, da sua filosofia.  Trata-se de Paul Nizan e de Maurice Merleau-Ponty: a eles dedicará algumas das mais belas páginas da sua literatura.  Comecemos por Nizan, que conhece no liceu parisiense Henri IV  e de quem só se separará com a morte deste, na batalha de Dunquerque, em 1940.  Nao se trata de um amigo qualquer, Sartre homenageará várias vezes esta amizade brusca e tatalmente interrompida. (…) depois de evocar os intermináveis passeios em que ele e Nizan se perdiam pelas ruas de Paris na juventude de ambos, sem ânimo nem orientaçao, simplesmente pelo prazer de conversarem e de se divertirem, escreve:  “Era Nizan, calmo e pérfido, encantador. Era assim que eu o amava”  E nas conversas com Simone de Beauvoir, ao recordar a etapa do Liceu, confessa que eram “amigos íntimos”.  A sua relaçao é emocionante e surpreendente. Sao tao proximos um do outro que trocarao de identificaçao, assumiriao com humor e riso a identificaçao do outro. (…) Estávamos ligados a tal ponto que nos confundiam um com o outro;  Léon Brunschvicg, em junho de 1939, encontrou-nos aos dois em casa do editor Gallimard e deu-me os parabéns por ter escrito “Os Caes de Guarda” (…)  Essa confusao durava há dezoito anos, tinha acabado por se converter no nosso estado social e acabámos por aceitá-la.  De 1920 a 1930, estudantes de liceu e depois da universidade, ninguém nos distinguia. (…) Têm uma vida louca e jubilosa.  Assim pretende retratá-los Cohen-Solal:  “Um silencioso e o outro estridente, um elegante e o outro desarranjado, um calmo e o outro violento; assim se manterao, complementares e diferentes até 1927.”  Dar-se-á um afastamento transitório quando os dois acabam os estudos de Filosofia na École, Sartre inicia a sua breve carreira académica no Liceu de Le Havre e Nizan parte para Aden. (…)  Há uma segunda amizade perigosa. Merleau-Ponty, uma das mentes privilegiadas da filosofia do século XX, (…)  Sartre concluiu o texto que lhe dedicou da seguinte forma:  “Para terminar, direi que esta longa amizade, nem construída nem destruída, abolida quando renascia, permanece em mim como uma ferida indefinidamente reaberta”. (…) Sartre começa a envolver-se no imediatismo político e sobretudo nas vicissitudes da política partidária.  Merleau-Ponty ensina-lhe muito, guia-o; nao se trata da amizade enlouquecida que se estabelecera com Nizan, mas Merleau-Ponty revela-lhe a precisao do marxismo para construir uma análise do real, da situaçao – nos termos sartrianos – e, por outro lado, chama-lhe a atençao para a dolorosa ligaçao histórica entre o projecto político e os seus efeitos nem sempre aceitáveis – embora necessários – , mas que convém ultrapassar em virtude de uma revitalizaçao do sujeito histórico-revolucionário.  (…)  No entanto, a verdade é que, mesmo afastados, continuam a sentir-se os dois optimistas fundadores de “Les Temps Modernes”.  No ano seguinte, 1956, encontram-se em Veneza.  Na verdade, está tudo preparado para uma reconciliaçao que so foi impedida pela morte de Merleau-Ponty em 1961.  A inquietaçao tinha tendência a desaparecer –  Nasceu outro sentimento; a benevolência -, esta afeiçao desolada, ternamente fúnebre, aos amigos esgotados, que se afastaram até nao terem mais em comum que a sua disputa, que um belo dia acaba por já nao ter razao de ser. (…)  As amizades perigosas deram os seus frutos.

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

    

ADAÍL DE GRACIAS E OBSCURIDADES

.

Adaíl de gracias e obscuridades

sucumbo

á memoria, á luz e ao misterio.

Unha estocada

no touro-diccionario (detido-case morto)

levanta unha estrela negra

de metal

e renazo con alborozo

para a festa

que confunde as cores.

Sería posíbel que a xuntanza

da xeometria – e a inherente proximidade-

me induciran

a olvidar todas as diversas cores

-ténues, leves porque recordadas á distancia

da visión-

non fose porque unha soa estrela

non pode reter entre as súas puntas

toda a diversa cor dun círculo

e o home selecciona -cousas, almas-

porque confunde ou olvida, ou algo lle foxe.

francisco candeira

INFLUÊNCIA DE HEIDEGGER

.

               A denominaçao do “existencialismo” parece mais complicada, já que o termo se converteu numa miscelânea em que se incluem filósofos, poetas, e romancistas. Sem dúvida, entre Heidegger e Jaspers, por exemplo, há tanta distância como entre Sartre e Camus.  Centramo-nos no existencialismo de Sartre, a partir da sua explicaçao em “A Propósito do Existencialismo”, onde estabelece que:  O existencialismo defende (…) que no homem (…) “a existência precede a essência” que, no mesmo sentido, “o homem deve criar a sua própria essència”, e “define o homem pela acçao”, e, para terminar, deve entender-se que “o existencialismo nao se apraz com o que é sombrio, que é antes uma filosofia humanista da acçao, do esforço, do combate, da solidariedade”. (…)  De repente, o mundo parece explodir. A Alemanha hitleriana estivera a olear a sua maquina bélica.  A França entra em conflito armado com a naçao vizinha:  profere-se a ordem de mobilizaçao geral a 2 de setembro de 1999.  Sartre é destinado a um campo de previsoes meteorológicas.  Começa o que em França se conhece como “drôle de guerre” (o que significa mais ou menos guerra tola, inútil).  Mas nao é inútil para Sartre, que, de braços cruzados practicamente todo o dia, dedica o seu tempo a ler e escrever.  Meses mais tarde, fatidicamente no dia em que faz 35 anos, é detido pelos invasores alemaes e transferido, pouco tempo depois, para o campo de concentraçao de Tréves, onde permanece até março de 1941.  Quando é libertado regressa a Paris.  É nos anos seguintes que entra em contacto com Heidegger, a segunda grande influência presente na sua filosofia. O filósofo alemao publicou em 1927 a sua obra-prima, “Ser e Tempo”.  O que propoe Heidegger?  Ou, por outras palavras, quais sao os aspectos da obra citada que chamam a atençao de Sartre, já que ele próprio as inclui de forma mais ou menos clara na sua própria matriz filosófica, e que se podem identificar sem muita dificuldade seguindo os apontamentos reunidos nos chamados “Diários de Uma Guerra Estranha”, a primeira parte dos “Cadernos de Guerra”?  Para responder satisfactoriamente á pergunta precisamos de ter em conta varias questoes.  Em primeiro lugar, parece inevitável destacar o método que vai reivindicar Heidegger para o análise daquilo que considera objecto fundamental da filosofia. (…) um retorno á análise das “próprias coisas” (…) partir de zero para restaurar a importância  da filosofia, destronando as crenças estabelecidas. (…)  Mas qual é o objecto fundamental da filosofia?  Esta é a segunda questao;  perguntar o que é o ser e acima de tudo, perguntar-se pela natureza do que está ali, em frente dos nossos olhos.  (…) que o primeiro aspecto relevante é compreender que a existência precede a essência,  ou seja que esvaciada a consciência, esta começa a ser alguma coisa quando se interroga sobre a essência do mundo, das coisas.  Entao o que começa a consciência vazia a descobrir?

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

A SEPARACIÓN – QUE BEN PODE SER PARTÍCULAS

.

A separación – que ben pode ser partículas

de pole dunha mesma flor –

deriva de visións dispares

ou descoñecidas entre si.

O punto de comunicación

depende da coincidencia de retencións.

A memoria pode ser insolidaria

e, logo, o diálogo imposíbel

ou estéril (a felicidade mentira,

a guerra adulterada).

E aínda  sendo a memoria

compartida, pode suceder

a insatisfacción ou o matiz

diferente: insuficiencia

onde dous puxan por distintos

extremos dunha nube para desvelar

a luz do acibeche

ou o movemento infixável

dos átomos, punto

de discordia e relatividade,

cosido dos deuses,

olvido sabio dos homes,

imprevisibilidade suposta e sorprendente.

 

francisco candeira

HUSSERL E A FENOMENOLOGIA

.

               A infância termina.  Em 1915, entra no Liceu Henri IV, em Paris. Aí conhece Paul Nizan, de quem falaremos mais á frente.  Anne-Marie e o jovem Sartre mudam-se para La Rochelle em 1918 por motivos que têm a ver com o segundo casamento da “irma mais velha”.  Sartre tem notas excepcionais: o pequeno génio de Charles Schweitzer começa a deslumbrar – Regressa a Paris e entra na École Normale Supérieure.  O ano de 1924 é impressionante: Sartre, Beauvoir, Hyppolite, Aron, Nizan, Lagache…   E anos mais tarde, em 1929, realiza-se a prova de agregaçao (necessária para acceder á condiçao de professor): Sartre fica em primeiro lugar, seguido de Beauvoir, Hyppolite consegue o quarto e Nizan o quinto lugar.  Pouco tempo depois, Sartre abandona Paris e ruma ao liçeu de Le Havre, onde dará aulas.  A verdade é que, como o próprio Sartre reconhecerá. tivera a imensa sorte de ler durante aqueles anos uma obra de Bergson – “Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência – que lhe abriu expectativas nas suas análises dos processos de conhecimento e assimilaçao do real, que no entanto serao envolvidas na influente maré da filosofia husserliana. Referimos Husserl entende-se por fenomenologia uma das correntes filosóficas mais importantes do século XX, e também os irracionalismos que se lhe tinham oposto. Husserl tentou transformar a filosofia numa ciência rigorosa, para o que considerava necessário ir “ás próprias coisas”, tal como aparecem na consciência… como o que é imediatamente dado, na sua essência ou conteúdo ideal.  Para esse fim, criou um método de descripçao que eliminava qualquer pressuposto interpretativo. Husserl, á época, já iniciara a seu honroso exílio académico, expulso de Friburgo pelas autoridades nacional-socialistas devido ás suas raízes judaicas.  O seu alumno mais próximo, Martin Heidegger, nao parece alheio ao estratagema para penalizar o seu professor, a quem dedicara “Ser e Tempo”.  Husserl desenvolvera uma importante obra filosófica durante as duas primeiras décadas do século.  As suas “Investigaçoes Lógicas” e as posteriores  “Ideias”, publicadas em 1900 – 1901 e 1913, respectivamente, marcaram com toda a certeza os primeiros eixos da aventura filosófica sartriana.  As obras citadas já incluem o fundamental da “fenomenologia” como projecto filosófico.

J. L. RODRIGUEZ GARCIA      

O HOME NON RECORDA, NON TEN MEMORIA

.

O Home non recorda, non ten memoria

e se a memoria en algo permanece

cae na perdición do real

porque transforma o recordado,

crea algo diferente.  É libre

porque comete traición

ou vive porque renova o erro,

abella afogada en mel,

bolboreta que morre aos dous días,

abella que pousou fugazmente

en catro flores e caíu

por aguillonear un corpo.

 

francisco candeira

SIMONE DE BEAUVOIR (VII)

.

               Mençao especial merece Simone de Beauvoir.  Também colega de Sartre na École, iniciaram uma relaçao que duraria até á morte do filósofo, embora acordada uma liberdade afectiva que nunca foi interrompida.  A diferença entre o que consideravam “amores contingentes” – aventuras sentimentais e sexuais – e o “amor verdadeiro” – que era o deles – marca a sua existência.  Beauvoir é uma excelente romancista – aí estao, por exemplo,  A Convidada (1943) ou Os Mandarins (1954), galardoado com o prestigiado Prémio Goncourt – e uma filósofa inesquecível, basta lembrar Por uma Moral da Ambiguidade.  Mas non seria possível reconstruir a França da segunda metade do século XX sem ter em conta a sua faceta memorialista: a leitura dos quatro volumes da sua autobiografia – e do quinto, se consideramos como tal A Cerimónia do Adeus – é empolgante.  Dito isto, é preciso destacar que, sem dúvida, a autora será sempre reconhecida pelo forte cataclismo que a publicaçao de “O Segundo Sexo” (1949) provocou:  a mulher nao nasce, mas sim faz-se – é esta a tese central da voluminosa obra.  Beauvoir levou a cabo um exercício extremo de erudiçao e reflexao para mostrar a que ponto sao as condiçoes culturais, religiosas, sociais, domésticas que configuram uma imagem da mulher como ser submisso, vulnerável e despersonalizado.  A partir dessa consideraçao reivindica a constituiçao de uma nova feminidade.  Todo o movimento feminista, que explode nos anos 60, é devedor das análises de “O Segundo Sexo”, próximo do seu posicionamento crítico para com o mesmo, a verdade é que Beauvoir é a referência essencial nesta história tempestuosa.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

NON HAI DISTANCIA

.

Non hai distancia

entre o fume e as columnas

porque non vexo diferencia

esencial entre a néboa

e a redondez pulida das columnas.

As tatuaxes (filigranas

apuradamente alcoólicas)

desta tripulación noctámbula

que me acompaña no mar

das botellas apiladas (a escuma

da onda son copas invertidas baixo luz)

veñen  dicirme

que no mármore hai naturalmente

petroglifos trazados

pola man cóncava da lúa.

Un whisqui tende a ponte circular

da comuñón, que é un plaxio

oculto, sen publicar,

acaso unha canción moi compartida,

acaso unha cita.

A comuñon: ese plaxio

porque cadaquén é outros:

eu non son soamente eu

porque a amizade

ergue o vaso ás alturas dos ollos.

 

francisco candeira

JEAN-PAUL SARTRE (VI)

.

               Em “As Palavras”, Sartre é categórico e cruel:  Jean-Baptiste “apoderou-se desta rapariguinha desamparada, casou com ela, fez-lhe um filho rapidamente, eu, e tentou regugiar-se na morte”.  Algumas páginas á frente reconhecerá que a morte do pai “foi o grande acontecimento da sua vida”. Porquê o grande acontecimento da sua vida?  Sartre responderia imediatamente a seguir a esta sentença desapiedada:  Como manda a regra, nenhum pai é bom; nao nos queixemos dos homens, mas do laço de paternidade, que está podre. (…) Se tivesse vivido, o meu pai teria caído em cima de mim com todo o seu peso e ter-me-ia esmagado. (…)  Foi bom ou mau?  Nao sei, mas aceito com gosto o veredicto de um eminente psicanalista: nao tenho “Superego”.  A referência é fundamental porque marca o alcance da liberdade na filosofia sartriana. De facto, refere-se a viver e agir á margem das imposiçoes familiares e sociais, nessa atmosfera de liberdade absoluta que pouco depois encontraria nas páginas de Nietzsche, que encarnarao as suas personagens literárias e na qual procurará uma âncora filosófica nas obras editadas a partir da década de 40.  Solitário, fechado na parisiense casa da rue Le Goff, do avô materno, o menino Sartre crescerá entre livros, silêncios e os absorventes cuidados de Anne-Marie, mae excessivamente protectora, a quem o menino nao reconhece como mae, mas como uma “irma mais velha”.  Um dia – tinha sete anos – o meu avô nao aguentou mais: deu-me a mao e disse-me que íamos passear.  Mas mal dobrámos a esquina meteu-me no barbeiro e disse-me: “Vamos fazer uma  surpresa á tua mae.”  Eu adorava surpresas. (…)  Em suma, vi com agrado os meus caracóis caírem ao longo da toalha branca que tinha á volta do pescoço e chegarem ao chao, inexplicavelmente sem brilho; voltei com o cabelo gloriosamente rapado.  É fácil imaginar o desgosto da mae.  A aceitaçao do pequeno de cabelo rapado implica uma dura mas inevitável liçao. (…)  A vivência da “fealdade” nao é apenas a descoberta de uma deficiência física: será interiorizada por Sartre como marca da individualidade humana, cuja existência estará marcada pela irreductibilidade em relaçao ao outro, pela consideraçao de que nao existe cópia do “Eu”, já que toda a existência tem uma peculiaridade extrema.  Como veremos mais á frente, esta ideia deverá ser reformada ou parcialmente corrigida em busca de uma semelhança que permita a conformaçao colectiva e, consequentemente, a práxis política. (…)  Há um terceiro acontecimento infantil de interresse biográfico.  O menino Sartre, isolado e introvertido, rodeado de livros, pó e murmúrios, encontra um feliz ensimesmamento na leitura.  “Comecei a minha vida como, sem dúvida a acabarei: no meio dos livros”, recorda e promete.  De facto, assim será.  E atençao a este belíssimo fragmento: Nunca esgaravatei a terra nem procurei ninhos, nao fiz ervários nem atirei pedras aos pássaros, mas os livros foram os meus pássaros e os meus ninhos, os meus animais de estimaçao, o meu estábulo e o meu campo; a biblioteca era o mundo preso num espelho; tinha a espessura infinita, a variedade, a imprevisibilidade.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

HAI UN NENO QUE XOGA NUN XARDÍN NOCTURNO

.

Á noite os balouzos son brazos

e os escorregas pernas deslizantes

por onde o neno se fuga,

ese neno que respira como unha árbore

movente máis…

Ese neno fun eu porque nunca morrín

nun ar estranxeiro.

Ese neno nunca fun eu porque brilla

na mirada das estrelas

e no monear das flores.

Ese neno é como os outros nenos

porque sabe da alegría

e do bris

e nunca lembra chaves

e só recoñece a memoria

nunha moeda achada

nun xardín de xogos

na mendiga noite.

 

francisco candeira

 

A REVOLUÇAO RUSSA (V)

.

               Aferrar-se ao pessimismo?  Sartre nao o fará, certamente.  E se nao o faz é devido ás causas do terceiro abalo que agitará o século XX, e de cujo espectro nao se poderá libertar.  Trata-se da Revoluçao Russa.  Passarao uns meses sobre o levantamento de fevereiro de 1917 até que Lenine entusiasme os minoritários bolcheviques e articule o poder dos sovietes, preparando tudo para o levantamento de novembro.  Este levantamento nao só afasta a Rússia da disputa mundial, como estabelece uma forma de poder absolutamente estranha aos modelos políticos estabelecidos.  É difícil imaginar a estupefaçao que a revoluçao semeia entre as elites dirigentes e o assombro que provoca entre filósofos, homens de letras e intelectuais em geral.  Nao existe figura representativa da década de 20 que nao se sinta fascinada pelo sucedido.  E quem equacionava alguma rejeiçao espera astutamente que o temporal amaine.  E Sartre, o que acha?  É preciso referir duas coisas.  Por um lado, contempla com certo distanciamento aquilo que acontece, embora manifeste uma íntima satisfaçao, como relata Beauvoir em “A Força da Idade”,  obra em que evoca esta lembrança:  O mundo estava em movimento, Sartre perguntava-se com frequência se nao nos devíamos ter solidarizado com os que trabalhavam para aquela revoluçao. (…)  Mais de uma vez durante esses anos Sartre sentiu-se vagamente tentado a filiar-se no Partido Comunista;  as suas ideias, os seus projectos, o seu temperamento, opunhan-se.  Mas embora gostasse tanto da independência como eu, tinha muito mais sentido das suas responsabilidades.   É evidente que a autora se refere ao efeito europeu, e especialmente françês, que tentava replicar o sentido da Revoluçao Russa no seu próprio território.  Mas a confissao refere uma segunda questao, que diz respeito a Sartre ter começado a simpatizar com a filosofia que inspirou as conquistas de novembro de 1917,  ou seja, o marxismo, que já iniciou o desenvolvimento fundamental que o transformará numa proposta filosófica omnipresente ao longo do século XX.  (…)  O século XX avança.  Sartre assume o seu papel de testemunha e activista.  Neste complexo contexto social e histórico, é preciso situar a aventura de quem, extremadamente atento aos acontecimentos que afectam a sociedade, nao para de intervir e de fundamentar a sua intervençao numa impressionante proeza intelectual.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

ONDINAS (HEINE)

.

Xa ouvistes as falas das mulleres

no mercado

e os berros dos homes nun xogo de balón

e o comentario dos rapaces

á saida do cine

mais ningún sonido hai máis fermoso

que as voces da xente na praia:

falan, gritan, xogan entre as ondas

e toda palabra semella moi lonxana

e allea a eles mesmos.

Como se un grito deviñera peixe

e che entrara polo ombro

che baixara ao brazo

deica á man

e se fugara

mar adiante

e só gañaras

un brillo

na gorxa e nos ollos

mentres mergullas

e despois pensas

que noutra praia

solitaria só quedara

un home

tendido, vencido, ferido,

coa súa armadura prateada

inmune á soidade

porque tres ou catro ondas

o socorren

e unha onda lle di ao oído á outra onda

(á que está máis cerca del, á que el máis quere).

dille que queres falar con el, dille.

 

francisco candeira

TRISTAN TZARA E O DADAÍSMO

.

               A partir de Zurique, Tristan Tzara começa a perturbar o tranquilo ambiente cultural da Primeira Guerra Mundial, com a fundaçao do movimento dadaista.  Pouco depois do fim da guerra muda-se para Paris, onde é recebido com solemnidade pelos surrealistas.  A leitura dos seus “Sete Manifestos Dadá” torna evidente a sua vocaçao crítica e extremista.  O Manifesto Dadaísta de 1918 termina com uma secçao intitulada “Nojo Dadaísta” que é esclarecedora:  “Todo o producto do nojo suscetível de se converter numa negaçao da família é DADÁ; (…) aboliçao de toda a hierarquia e equaçao social instalada para os valores dos nossos lacaios é DADÁ;  (…) Aboliçao da memória é DADÁ. (…)   Tzara entra para a resistência antinazi.  Em 1947, filia-se no Partido Comunista Francês, de que se afastará devido á invasao da Hungria pelas forças do Pacto de Varsóvia.  Deve chamar-se a atençao para o facto de o dadaísmo ter, desde o início, uma clara vocaçao política.  Também em Tzara, mas sobretudo na sua vertente alema, em que artistas como John Heartfield, Richard Hulsenbeck ou George Grosz oferecem uma arte com uma clara motivaçao política, ao ponto de o dadaísmo aleman apoiar com entusiasmo o levantamento espartaquista liderado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

ESTA HORA DA TARDE

.

ofréceme contemplar tres formigas

a evadirse prudentemente

da súa columna, que sobe e baixa

o valadiño en que estou sentado.

No chan camiñan as tres ínfimas formigas.

Móvense, sinuosas, entre o sol e a sombra,

pois un arbusto reflecte as súas follas

na grava ennegrecida

onde apoio os meus pés.

Mais un bris desloca e confunde e mistura,

presuroso, os espazos de sol e os espazos

de sombra. E así, onde antes era o sol,

agora é a sombra,

e onde hai un intre era a sombra, agora é o sol.

E as formigas reciben o sol e a sombra,

ou pasan, cando amaina, do sol para a sombra

e da sombra para o sol.

(Unha ponta de cigarro, coa cinza

moi visíbel, é algo tremendamente grande

para a vista, case unha torre derrotada).

Tras contemplar as tres diminutas formigas

e a columna toda que se dispón

(ondulante) enteiramente na sombra,

atravesando o valadiño,

podo pensar que estas tres formiguiñas

andan a xogar co sol e coa sombra,

xa recordando o sol, xa recordando a sombra,

e coa sombra no sol e o sol na sombra –

axudadas polas follas e o bris.

 

E tal como o sol entra no inverno

ou como as tebras poden sorprender o verán,

eu podo pensar que hai un movimento lúcido

que demuda a vida (en alegría, asombro, fermosa sorpresa)

se, transmutándose, se sublevan corazón e pensamento.

 

francisco candeira

JEAN-PAUL SARTRE (III)

.

                    Naturalmente, por ser muito jovem em 1914, Sartre nao participou no conflito. Porém, sofreu as consequências de forma indirecta, visto que a Alsácia era a pátria dos seus antepassados- (…) Arrancada á Alemanha e anexada á geografia francesa, facilitou a mudança da família materna de Sartre para Paris.  Mas sobre tudo a referência indirecta da guerra, que se transformará em objecto de reflexao para filósofos e homens de letras, semeou duas vivências em Sartre que o acompanharam muitos anos:  por um lado, um pessimismo profundo quanto á possibilidade do progresso e do encontro colectivo, e, por outro, um nao menor pessimismo quanto á possível bondade do homem.  Isto é visível nos seus primeiros textos narrativos – A Náusea ou O Muro- e, sem dúvida, nas suas obras teatrais.  E esse estado de espírito encontrará traduçao filosófica em “O ser e o Nada”, o tratado em que a reivindicaçao da liberdade absoluta conduz á defesa de uma moral individualista e sem solidariedade, e isto apesar de, naquela altura, Sartre já ter iniciado o seu caminho rumo a uma politizaçao antiburguesa e pró-socialista.  Desta forma, Sartre associava-se ao horizonte crítico com o poder social e político estabelecido.  A visao sombria e angustiante da situaçao nao foi, nem de longe, exclusiva de Sartre.  O tema abunda na literatura da época.  As consideraçoes sobre os acontecimentos de 1914 a 1918 eram de uma acidez extraordinária. Podemos e devemos relembrar, por exemplo, Tristan Tzara, que inspirou em grande medida o projecto surrealista françês.  Exilado da sua Roménia natal em Zurique, onde conheceu Lenine, provocou um dos ataques mais directos e frontais á cultura vigente, mostrando um ódio juvenil extremo aos mestres e á civilizaçao que conduziram á hecatombe que a geraçao viveu.  O movimento que criou, denominado dadá, procurou o esquecimento da aventura cultural e o início de uma nova forma de entender a sensibilidade e a criaçao.  Em 1920, mudar-se-ia para Paris, onde foi recebido com entusiasmo pela tribo surrealista, que assumiu alguns dos princípios que Tzara começara a expressar nos seus periódicos manifestos.  Culturalmente, o dadaísmo colheu alguns dos seus mais importantes frutos na França de Sartre, tanto na sua versao literária como na sua projecçao política- e sobretudo no surrealismo.  Breton, pontífice do surrealismo e militante activo do confronto cultural contra quem, na sua opiniao, conduziria a Europa ao extermínio e á banalidade, derivará para uma aproximaçao á política comunista a par de poetas como Aragon ou Éluard.  Daí que o “Segundo Manifesto” incluia  de forma explícita Marx como profeta, juntamente com Rimbaud, o poeta conflictuoso e radicalmente insubmisso em relaçao á cultura europeia.  O resultado tem uma dupla natureza:  mudar a vida (Rimbaud), mudar o mundo (Marx).  E esta vontade de mudar aposta numa radicalizaçao revolucionária de sinais extremos.  Sartre está situado neste horizonte marcado pela Primeira Guerra Mundial.  Escreverá mais tarde, com uma contundência surpreendente, que o seu ódio á burguesia nunca se vai extinguir: é a civilizaçao que desembocou na ruína e na desolaçao.

 

J. L. RODRIGUEZ GARCIA

.