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Nao estava no propósito do príor desgraçar o rapaz. Pelo contrário. Quando o chamou, e com grande argumentaçao o convenceu a ficar a substituir o pai, cuidava até que lhe facia um especial favor. Homem prático, embora tivesse por ofício tratar de coisas do céu o seu forte eram assuntos cá deste mundo. Negociar em minério, granjear bons lameiros, criar gado. E dizia-lhe: -Bem vês, numa terra pequena, onde nao há ganhos, um vintém que seja faz sempre arranjo. Ora tu sabes muito que o lugar de sacristao é unha pingadeira. Sao as missas, os casamentos, os baptizados… -E os enterros…. -Evidentemente! Mas que tem lá isso? -Nao sei, nao gosto. -Oh! homem de Deus, olha que tudo é preciso neste mundo. Se nao morrêssemos, comíamo-nos aqui uns aos outros. -Deixá-lo! Antes quero ganha-lo á enxada. -Nao dês respostas á toa! Pensa primeiro. Está pensado. Abrir covas, nao… E tu a dar-lhe! Nao plantas bacelo? Nao saibras? -Pois saibro. -Entao? -É muito diferente. -Parece-te. Tudo é terra! O Felisberto ouvia aquelas heresias, a olhar o padre com desconfiança. Estás admirado? -Se quer que lhe fale franco… Eu compreendo. Mas nao há motivo para espantos. O corpo, quando a alma o deixa, é um monte de estrume a apodrecer. -Será Eu é que nao tenho feitio… -Qual nao tens! Acostumas-te, que é um regalo. Depois já nem reparas. -A modos que até o estômago se me revira só com a ideia… -Mau! Que diabo de homem és tu ?! Cabeçudo, o mal era o prior pensar numa coisa. Enquanto nao levasse a sua avante, nao sossegava. E tanto teimou, tantas voltas lhe deu, que o pobre do Felisberto acabou por se conformar. -Pronto, seja. Bem me custa….
-E nao te arrependes, verás. Eu tinha outros que queriam o lugar. Bastava acenar-lhes. Mas prefiro que fiques tu… -Muito obrigado. -Portanto, estamos entendidos. Posso contar? -Pode. Naquela aceitaçao resignada, via o padre a luz do bom senso a reluzir no espírito do rapaz. Quando na verdade, ela significava apenas uma renúncia impotente a felicidades futuras que o instinto do Felisberto pressentia. -Sempre te resolveste? – quis saber, logo a seguir, a Filomena Velha, a beata mais categorizada da aldeia, que de longe vigiava a conversa. -Resolvi. -Custou! Tolo, que ias atirando com a sorte pela porta fora! -Se calhar atirei mas foi com outra coisa… -Que coisa? -Sei lá… Era um presságio vago, um pavor difuso que o afligia. A causa verdadeira de tal medo, nao a sabia dizer. Quando na conversa com o prior insistia na repugnância que sentia pelo serviço no cemitério, agarrava-se a uma tábua de salvaçao. A realidade da sua recusa tinha raízes mais fundas. -Acredita que fizeste bem! – teimava a Filomena. -Nao sei se fiz bem, se fiz mal. -Quem anda no serviço de Deus faz sempre bem. -Veremos. Tempos depois, ainda o sacristao mantinha no espírito e nas palavras a mesma incerteza quanto á excelência do emprego. No fim de uma semana de missoes, quando a santanária se babava de felicidade, e queriq lógicamente compartilhar a sua alegria com o Felisberto, ouviu esta enormidade: -No dia em que me meti nisto, se tenho quebrado uma perna… Eu benzo-me! Pareces maluco. Olha que os tempos vao ruins! -Ás vezes sabe melhor uma malga de caldo comida com gosto, do que… -É o que te parece. Avisado pela devota, o prior acudiu ao desânimo do rapaz. Também a ele lhe custara engrenar naquela vida de incensos, velas, pecados e agonias, que tinham sempre um desfecho tumular. Mas fez-se forte, que remédio, e agora nem dava conta.
Grato ás palavras de estímulo que ouvia, o Felisberto começou também a lutar. E com o andar do tempo já lhe nao metiam tanta afliçao as missas intermináveis, a gritaria dos miúdos ao pé da pia da água benta, e as caveiras que ia desenterrando sempre que abria uma campa nova. E quase se esquecera da relutância com que aceitara o lugar, quando teve, finalmente, a chave dos seus misteriosos e aparentemente absurdos pressentimentos. Morrera sempre pela Deolinda. Desde garoto que sentia um gosto particular ao vê-la passar, muito ruiva e muito espevitada. Ambos da mesma criaçao, sem saber como, a imagem da rapariga foi-o acompanhando no crescimento. E, naturalmente, acabou por integrá-la na sua própria realidade. Sem nunca sequer lho dar a demonstrar, sempre que olhava o futuro via-se na companhia dela. Por isso, uma vez que ia ganhando o suficiente e podia pensar em arrumar-se, na primeira oportunidade que teve, abriu-lhe o coraçao. Encontrou-a por acaso no caminho da igreja. Toda desenganada, vinha de levar o almoço ao pai, que andava a lavrar no Borrajo. Depois de lhe falar do tempo e das sementeiras, habilidosamente foi encarreirando a conversa para o ponto que lhe convinha. A princípio, a cachopa fez-se desentendida. Mas apenas ele, claramente, lhe declarou que a pretendia, deu-lhe um nao redondo. Como um animal pacífico que recebesse uma chicotada, ficou petrificado de espanto e de pavor. Sem ela, a sua vida perdia todo o sentido. Contudo, passado o momento de dolorosa surpresa, sem despeito, humanamente, aceitou o desencontro amoroso. Agora quando a moça lhe explicou o motivo por que nunca o quereria, é que lhe caiu de todo a alma aos pés. -Nao. O homem que me levar, nao me há-de abrir a cova, se Deus quiser. Ah, que bem lho dizia o coraçao! Burro, que se deixara perder! Passou a noite em branco, a cismar na resposta da rapariga. E se abandonasse o lugar? Se nunca mais… Mas nao. O mal já nao tinha remédio. Nem ele seria capaz de lhe falar outra vez. No dia seguinte, a auxiliar o prior a paramentar-se, deu-lhe tal repelao na alva, que o bom homem perguntou, entre duas oraçoes: -Tu que tens? -Nada. E cada vez mais triste, o Felisberto continuou a sua vida de sacristao. Sempre soturno, foi ele que ajudou a casar a Deolinda e a tornar-lhe os filhos cristaos. Com a sua paixao recalcada, tocou-lhe a repique todas as vezes que foi preciso. .
O padre só dizia: -No domingo temos o baptizado de mais um crianço da Deolinda. -A que horas? -Depois da missa. E, acabada a celebraçao, lá estava el a puxar á corda do sino. -Porque nao casas também? – perguntou-lhe um dia o prior, depois de prender com a estola a mao do Ramiro, o último solteiro da geraçao do Felisberto. -Agora! -Entao, que idade rens? -Sei lá! A idade nao é o que faz. O padre nao compreendeu, mas nao quis aprofundar. A sua própria castraçao solidarizava-se mais fácilmente com um Felisberto mutilado e solitário. Contudo, passados anos, já quando o vento do outonoos abanava, gemeu: -Envelhecemos para aqui ambos como dois infelizes… O sacristao encolheu os ombros, resignado. -Calhou assim… E nunca o prior soube se a resposta do Felisberto era uma censura velada, nem o Felisberto se as palavras do prior eram um desabafo de alma. Evidente, só a velhice que os mirrava, cada vez mais enrugada e branca. O padre, trôpego, subia com dificuldade os degraus do altar, e quase que adormecia a ler o missal. Quanto ao Felisberto, esse tinha uma ronceira no peito que se ouvia do fundo da igreja. -Eles nao perdoam… -queixava-se o prior, cheio de reumatismo. -Já cá cantam setenta e très. Apesar de mais novo, o Felisberto parecia andar nos oitenta. Tais eram os estragos da doença e da solidao! -E tu, quantos? -Perdi-lhes a conta. Desde que a Deolinda o desprezara, o tempo para el deixara de ter medida. Ou era uma eternidade baça, ou aquel segundo nítido em que ela lhe dissera que nao. E a própria bronquite como que já facia parte dessa monotonia sem quebras. -Vai ao médico, homem! Trata disso! – teimava o prior, agarrado á vida, apesar dos achaques.
É crónico. Nao vale a pena. E o triste, acompanhado da gataria do peito, ia arrastando como podia o seu latim de coadjutor. Ás veces os acessos de tosse quase que o sufocavam. Mas lá continuava a mudar o missal e a chegar as galhetas, sem o amparo sequer dum coraçao condoído. No ramerrao da igreja, a gosma acabou por já nem causar impressao aos fiéis. -Temos um enterro amanha. -De quem é? -Da Deolinda. Teve um ataque há bocadinho, chamaram-me á pressa para lhe dar a extrema-unçao, e quando lá cheguei estava morta. É preciso tocar a sinais. Ficou pensativo, mas o prior nem deu conta. Saiu da sacristia, foi á torre anunciar a desgraça, e nesse mesmo dia, á tardinha, tratou de abrir a cova da que nao quiserq ser sua mulher por essa razao. Começou a cavar sem ânimo, aflito por dentro e muito infeliz. Iam saindo ossos, farrapos, tábuas, – o espólio habitual dos hóspedes passados. Mas nem reparava. Só os braços é que trabalhavam. A sua atençao estava ausente daquelas misérias. Ou se alheava para atender a um apelo insistente da memória, ou se concentrava no alvoroço do coraçao, a bater descompassado dentro do peito. Um suor frio, como nunca sentira, começou a humedecê-lo todo. Gotejante a princípio, alargava-se numa inundaçao. Pesadas as ferramentas pareciam de chumbo. Contudo, continuava a manejá-las, numa espécie de automatismo, como uma máquina em movimento que por sí só nao pudesse parar. Já fundo, quando a campa lhe dava pelo pescoço, o esvaiamento aumentou. Um garrote invisível apertava-lhe a vida. Pousou a pá e encostou-se á trincheira. -Estou pronto. O lusco-fusco embainhava de tristeza maciça os quatro ciprestes que guardavam os cantos do cemitério. Nos buxos alinhados havia uma paz cansada, de sono. -Acabou-se o fadário… Num adeus quase indiferente, rolou a cabeça á superfície do mundo, como um roberto que nao tivesse corpo. Cruzes e mais cruzes… Valeu a pena!… Depois, sem forças para sair do buraco, aninhou-se nele o melhor que pôde. -Esta é para mim… -murmurou. -A dela que lha faça quem quiser. Escusava de ter medo , afinal…





