Arquivos diarios: 29/08/2016

O LUGAR DE SACRISTAO

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                    Nao estava no propósito do príor desgraçar o rapaz.   Pelo contrário.   Quando o chamou, e com grande argumentaçao o convenceu a ficar  a substituir o pai, cuidava até que lhe facia um especial favor.   Homem prático,  embora tivesse por ofício tratar de coisas do céu o seu forte eram assuntos cá deste mundo.   Negociar em minério, granjear bons lameiros,  criar gado.    E dizia-lhe:    -Bem vês, numa terra pequena, onde nao há ganhos, um vintém que seja faz sempre arranjo.   Ora tu sabes muito que o lugar de sacristao é unha pingadeira.   Sao as missas, os casamentos, os baptizados…   -E os enterros….   -Evidentemente!   Mas que tem lá isso?   -Nao sei,  nao gosto.   -Oh! homem de Deus, olha que tudo é preciso neste mundo.   Se nao morrêssemos, comíamo-nos aqui uns aos outros.   -Deixá-lo!   Antes quero ganha-lo á enxada.   -Nao dês respostas á toa!   Pensa primeiro.   Está pensado.   Abrir covas, nao…   E tu a dar-lhe!   Nao plantas bacelo?   Nao saibras?   -Pois saibro.   -Entao?   -É muito diferente.   -Parece-te.   Tudo é terra!   O Felisberto ouvia aquelas heresias, a olhar o padre com desconfiança.   Estás admirado?   -Se quer que lhe fale franco…   Eu compreendo.   Mas nao há motivo para espantos.   O corpo,  quando a alma o deixa, é um monte de estrume a apodrecer.   -Será   Eu é que nao tenho feitio…   -Qual nao tens!   Acostumas-te, que é um regalo.   Depois já nem reparas.   -A modos que até o estômago se me revira só com a ideia…   -Mau!   Que diabo de homem és tu ?!   Cabeçudo,  o mal era o prior pensar numa coisa.   Enquanto nao levasse a sua avante, nao sossegava.   E tanto teimou, tantas voltas lhe deu, que o pobre do Felisberto acabou por se conformar.   -Pronto, seja.   Bem me custa….

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                    -E nao te arrependes, verás.   Eu tinha outros que queriam o lugar.   Bastava acenar-lhes.   Mas prefiro que fiques tu…   -Muito obrigado.   -Portanto, estamos entendidos.   Posso contar?   -Pode.   Naquela aceitaçao resignada, via o padre a luz do bom senso a reluzir no espírito do rapaz.   Quando na verdade, ela significava apenas uma renúncia impotente a felicidades futuras que o instinto do Felisberto pressentia.   -Sempre te resolveste? – quis saber, logo a seguir, a Filomena Velha, a beata mais categorizada da aldeia, que de longe vigiava a conversa.   -Resolvi.   -Custou!   Tolo, que ias atirando com a sorte pela porta fora!   -Se calhar atirei mas foi com outra coisa…   -Que coisa?   -Sei lá…   Era um presságio vago, um pavor difuso que o afligia.   A causa verdadeira  de tal medo, nao a sabia dizer.   Quando na conversa com o prior insistia na repugnância que sentia pelo serviço no cemitério, agarrava-se a uma tábua de salvaçao.   A realidade da sua recusa tinha raízes mais fundas.   -Acredita que fizeste bem! – teimava a Filomena.   -Nao sei se fiz bem, se fiz mal.   -Quem anda no serviço de Deus faz sempre bem.   -Veremos.   Tempos depois, ainda o sacristao mantinha no espírito e nas palavras a mesma incerteza quanto á excelência do emprego.   No fim de uma semana de missoes, quando a santanária se babava de felicidade, e queriq lógicamente compartilhar a sua alegria com o Felisberto, ouviu esta enormidade:   -No dia em que me meti nisto, se tenho quebrado uma perna…   Eu benzo-me!   Pareces maluco.   Olha que os tempos vao ruins!   -Ás vezes sabe melhor uma malga de caldo comida com gosto, do que…   -É o que te parece.   Avisado pela devota, o prior acudiu ao desânimo do rapaz.   Também a ele lhe custara engrenar naquela vida de incensos, velas, pecados e agonias, que tinham sempre um desfecho tumular.   Mas fez-se forte, que remédio, e agora nem dava conta.

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                    Grato ás palavras de estímulo que ouvia, o Felisberto começou também a lutar.   E com o andar do tempo já lhe nao metiam tanta afliçao as missas intermináveis, a gritaria dos miúdos ao pé da pia da água benta, e as caveiras que ia desenterrando sempre que abria uma campa nova.   E quase se esquecera da relutância com que aceitara o lugar, quando teve, finalmente, a chave dos seus misteriosos e aparentemente absurdos pressentimentos.   Morrera sempre pela Deolinda.   Desde garoto que sentia um gosto particular ao vê-la passar, muito ruiva e muito espevitada.   Ambos da mesma criaçao, sem saber como, a imagem da rapariga foi-o acompanhando no crescimento.   E, naturalmente, acabou por integrá-la na sua própria realidade.   Sem nunca sequer lho dar a demonstrar, sempre que olhava o futuro via-se na companhia dela.   Por isso, uma vez que ia ganhando o suficiente e podia pensar em arrumar-se, na primeira oportunidade que teve, abriu-lhe o coraçao.   Encontrou-a por acaso no caminho da igreja.   Toda desenganada, vinha de levar o almoço ao pai, que andava a lavrar no Borrajo.   Depois de lhe falar do tempo e das sementeiras, habilidosamente  foi encarreirando a conversa para o ponto que lhe convinha.   A princípio, a cachopa fez-se desentendida.   Mas apenas ele, claramente, lhe declarou que a pretendia, deu-lhe um nao  redondo.   Como um animal pacífico que recebesse uma chicotada, ficou petrificado de espanto e de pavor.   Sem ela, a sua vida perdia todo o sentido.   Contudo, passado o momento de dolorosa surpresa, sem despeito, humanamente, aceitou o desencontro amoroso.   Agora quando a moça lhe explicou o motivo por que nunca o quereria,  é que lhe caiu de todo a alma aos pés.   -Nao.   O homem que me levar, nao me há-de abrir a cova, se Deus quiser.   Ah, que bem lho dizia o coraçao!   Burro, que se deixara perder!   Passou a noite em branco, a cismar na resposta da rapariga.   E se abandonasse o lugar?   Se nunca mais…   Mas nao.   O mal já nao tinha remédio.   Nem ele seria capaz de lhe falar outra vez.   No dia seguinte, a auxiliar o prior a paramentar-se, deu-lhe tal repelao na alva, que o bom homem perguntou, entre duas oraçoes:     -Tu que tens?   -Nada.   E cada vez mais triste, o Felisberto continuou a sua vida de sacristao.   Sempre  soturno, foi ele que ajudou a casar a Deolinda e a tornar-lhe os filhos cristaos.   Com a sua  paixao recalcada, tocou-lhe a repique todas as vezes que foi preciso.     .

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                    O padre só dizia:   -No domingo temos o baptizado de mais um crianço da Deolinda.   -A que horas?   -Depois da missa.   E, acabada a celebraçao, lá estava el a puxar á corda do sino.   -Porque nao casas também? – perguntou-lhe um dia o prior, depois de prender com a estola a mao do Ramiro, o último solteiro da geraçao do Felisberto.   -Agora!   -Entao, que idade rens?   -Sei lá!   A idade nao é o que faz.   O padre nao compreendeu, mas nao quis aprofundar.   A sua própria castraçao solidarizava-se mais fácilmente com um Felisberto mutilado e solitário.   Contudo, passados anos, já quando o vento do outonoos abanava, gemeu:   -Envelhecemos para  aqui ambos como dois infelizes…   O sacristao encolheu os ombros, resignado.   -Calhou assim…   E nunca o prior soube se a  resposta do Felisberto era uma censura velada, nem o Felisberto se as palavras do prior eram um desabafo  de alma.   Evidente, só a velhice que os mirrava, cada vez mais enrugada e branca.   O padre, trôpego, subia com dificuldade os degraus do altar, e quase que adormecia a ler o missal.   Quanto ao Felisberto, esse tinha uma ronceira no peito que se ouvia do fundo da igreja.   -Eles nao perdoam…   -queixava-se o prior, cheio de reumatismo.   -Já cá cantam setenta e très.   Apesar de mais novo, o Felisberto parecia andar nos oitenta.   Tais eram os estragos da doença e da solidao!   -E tu, quantos?   -Perdi-lhes a conta.   Desde que a Deolinda o desprezara,  o tempo para el deixara de ter medida.   Ou era uma eternidade baça, ou aquel segundo nítido em que ela lhe dissera que nao.   E a própria bronquite como que já facia parte dessa monotonia sem quebras.   -Vai ao médico, homem!   Trata disso!   – teimava o prior, agarrado á vida, apesar dos achaques.

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                    É crónico.   Nao vale a pena.   E o triste, acompanhado da gataria do peito, ia arrastando como podia o seu latim de coadjutor.   Ás veces os acessos de tosse quase que o sufocavam.   Mas lá continuava a mudar o missal e a chegar as galhetas, sem o amparo sequer dum coraçao condoído.   No ramerrao da igreja, a gosma acabou por já nem causar impressao aos fiéis.   -Temos um enterro amanha.   -De quem é?   -Da Deolinda.   Teve um ataque há bocadinho, chamaram-me á pressa para lhe dar a extrema-unçao, e quando lá cheguei estava morta.   É preciso tocar a sinais.   Ficou pensativo, mas o prior nem deu conta.   Saiu da sacristia, foi á torre anunciar a desgraça, e nesse mesmo dia, á tardinha, tratou de abrir a cova da que nao quiserq ser sua mulher por essa razao.   Começou a cavar sem ânimo, aflito por dentro e muito infeliz.   Iam saindo ossos, farrapos, tábuas, – o espólio habitual dos hóspedes passados.   Mas nem reparava.   Só os braços é que trabalhavam.   A sua atençao estava ausente daquelas misérias.   Ou se alheava para atender a um apelo insistente da memória, ou se concentrava no alvoroço do coraçao, a bater descompassado dentro do peito.   Um suor frio, como nunca sentira, começou a humedecê-lo todo.   Gotejante a princípio, alargava-se numa inundaçao.   Pesadas as ferramentas pareciam de chumbo.   Contudo, continuava a manejá-las, numa espécie de automatismo, como uma máquina em movimento que por sí só nao pudesse parar.   Já fundo, quando a campa lhe dava pelo pescoço, o esvaiamento aumentou.  Um garrote invisível apertava-lhe a vida.   Pousou a pá e encostou-se á trincheira.   -Estou pronto.   O lusco-fusco embainhava de tristeza maciça os quatro ciprestes que guardavam os cantos do cemitério.   Nos buxos alinhados havia uma paz cansada, de sono.   -Acabou-se o fadário…   Num adeus quase indiferente, rolou a cabeça á superfície do mundo, como um roberto que nao tivesse corpo.   Cruzes e mais cruzes…   Valeu a pena!…   Depois, sem forças para sair do buraco, aninhou-se nele  o melhor que pôde.   -Esta é para mim…   -murmurou.   -A dela que lha faça quem quiser.   Escusava de ter medo , afinal…

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miguel torga