Arquivos mensuais: Agosto 2016

O LUGAR DE SACRISTAO

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                    Nao estava no propósito do príor desgraçar o rapaz.   Pelo contrário.   Quando o chamou, e com grande argumentaçao o convenceu a ficar  a substituir o pai, cuidava até que lhe facia um especial favor.   Homem prático,  embora tivesse por ofício tratar de coisas do céu o seu forte eram assuntos cá deste mundo.   Negociar em minério, granjear bons lameiros,  criar gado.    E dizia-lhe:    -Bem vês, numa terra pequena, onde nao há ganhos, um vintém que seja faz sempre arranjo.   Ora tu sabes muito que o lugar de sacristao é unha pingadeira.   Sao as missas, os casamentos, os baptizados…   -E os enterros….   -Evidentemente!   Mas que tem lá isso?   -Nao sei,  nao gosto.   -Oh! homem de Deus, olha que tudo é preciso neste mundo.   Se nao morrêssemos, comíamo-nos aqui uns aos outros.   -Deixá-lo!   Antes quero ganha-lo á enxada.   -Nao dês respostas á toa!   Pensa primeiro.   Está pensado.   Abrir covas, nao…   E tu a dar-lhe!   Nao plantas bacelo?   Nao saibras?   -Pois saibro.   -Entao?   -É muito diferente.   -Parece-te.   Tudo é terra!   O Felisberto ouvia aquelas heresias, a olhar o padre com desconfiança.   Estás admirado?   -Se quer que lhe fale franco…   Eu compreendo.   Mas nao há motivo para espantos.   O corpo,  quando a alma o deixa, é um monte de estrume a apodrecer.   -Será   Eu é que nao tenho feitio…   -Qual nao tens!   Acostumas-te, que é um regalo.   Depois já nem reparas.   -A modos que até o estômago se me revira só com a ideia…   -Mau!   Que diabo de homem és tu ?!   Cabeçudo,  o mal era o prior pensar numa coisa.   Enquanto nao levasse a sua avante, nao sossegava.   E tanto teimou, tantas voltas lhe deu, que o pobre do Felisberto acabou por se conformar.   -Pronto, seja.   Bem me custa….

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                    -E nao te arrependes, verás.   Eu tinha outros que queriam o lugar.   Bastava acenar-lhes.   Mas prefiro que fiques tu…   -Muito obrigado.   -Portanto, estamos entendidos.   Posso contar?   -Pode.   Naquela aceitaçao resignada, via o padre a luz do bom senso a reluzir no espírito do rapaz.   Quando na verdade, ela significava apenas uma renúncia impotente a felicidades futuras que o instinto do Felisberto pressentia.   -Sempre te resolveste? – quis saber, logo a seguir, a Filomena Velha, a beata mais categorizada da aldeia, que de longe vigiava a conversa.   -Resolvi.   -Custou!   Tolo, que ias atirando com a sorte pela porta fora!   -Se calhar atirei mas foi com outra coisa…   -Que coisa?   -Sei lá…   Era um presságio vago, um pavor difuso que o afligia.   A causa verdadeira  de tal medo, nao a sabia dizer.   Quando na conversa com o prior insistia na repugnância que sentia pelo serviço no cemitério, agarrava-se a uma tábua de salvaçao.   A realidade da sua recusa tinha raízes mais fundas.   -Acredita que fizeste bem! – teimava a Filomena.   -Nao sei se fiz bem, se fiz mal.   -Quem anda no serviço de Deus faz sempre bem.   -Veremos.   Tempos depois, ainda o sacristao mantinha no espírito e nas palavras a mesma incerteza quanto á excelência do emprego.   No fim de uma semana de missoes, quando a santanária se babava de felicidade, e queriq lógicamente compartilhar a sua alegria com o Felisberto, ouviu esta enormidade:   -No dia em que me meti nisto, se tenho quebrado uma perna…   Eu benzo-me!   Pareces maluco.   Olha que os tempos vao ruins!   -Ás vezes sabe melhor uma malga de caldo comida com gosto, do que…   -É o que te parece.   Avisado pela devota, o prior acudiu ao desânimo do rapaz.   Também a ele lhe custara engrenar naquela vida de incensos, velas, pecados e agonias, que tinham sempre um desfecho tumular.   Mas fez-se forte, que remédio, e agora nem dava conta.

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                    Grato ás palavras de estímulo que ouvia, o Felisberto começou também a lutar.   E com o andar do tempo já lhe nao metiam tanta afliçao as missas intermináveis, a gritaria dos miúdos ao pé da pia da água benta, e as caveiras que ia desenterrando sempre que abria uma campa nova.   E quase se esquecera da relutância com que aceitara o lugar, quando teve, finalmente, a chave dos seus misteriosos e aparentemente absurdos pressentimentos.   Morrera sempre pela Deolinda.   Desde garoto que sentia um gosto particular ao vê-la passar, muito ruiva e muito espevitada.   Ambos da mesma criaçao, sem saber como, a imagem da rapariga foi-o acompanhando no crescimento.   E, naturalmente, acabou por integrá-la na sua própria realidade.   Sem nunca sequer lho dar a demonstrar, sempre que olhava o futuro via-se na companhia dela.   Por isso, uma vez que ia ganhando o suficiente e podia pensar em arrumar-se, na primeira oportunidade que teve, abriu-lhe o coraçao.   Encontrou-a por acaso no caminho da igreja.   Toda desenganada, vinha de levar o almoço ao pai, que andava a lavrar no Borrajo.   Depois de lhe falar do tempo e das sementeiras, habilidosamente  foi encarreirando a conversa para o ponto que lhe convinha.   A princípio, a cachopa fez-se desentendida.   Mas apenas ele, claramente, lhe declarou que a pretendia, deu-lhe um nao  redondo.   Como um animal pacífico que recebesse uma chicotada, ficou petrificado de espanto e de pavor.   Sem ela, a sua vida perdia todo o sentido.   Contudo, passado o momento de dolorosa surpresa, sem despeito, humanamente, aceitou o desencontro amoroso.   Agora quando a moça lhe explicou o motivo por que nunca o quereria,  é que lhe caiu de todo a alma aos pés.   -Nao.   O homem que me levar, nao me há-de abrir a cova, se Deus quiser.   Ah, que bem lho dizia o coraçao!   Burro, que se deixara perder!   Passou a noite em branco, a cismar na resposta da rapariga.   E se abandonasse o lugar?   Se nunca mais…   Mas nao.   O mal já nao tinha remédio.   Nem ele seria capaz de lhe falar outra vez.   No dia seguinte, a auxiliar o prior a paramentar-se, deu-lhe tal repelao na alva, que o bom homem perguntou, entre duas oraçoes:     -Tu que tens?   -Nada.   E cada vez mais triste, o Felisberto continuou a sua vida de sacristao.   Sempre  soturno, foi ele que ajudou a casar a Deolinda e a tornar-lhe os filhos cristaos.   Com a sua  paixao recalcada, tocou-lhe a repique todas as vezes que foi preciso.     .

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                    O padre só dizia:   -No domingo temos o baptizado de mais um crianço da Deolinda.   -A que horas?   -Depois da missa.   E, acabada a celebraçao, lá estava el a puxar á corda do sino.   -Porque nao casas também? – perguntou-lhe um dia o prior, depois de prender com a estola a mao do Ramiro, o último solteiro da geraçao do Felisberto.   -Agora!   -Entao, que idade rens?   -Sei lá!   A idade nao é o que faz.   O padre nao compreendeu, mas nao quis aprofundar.   A sua própria castraçao solidarizava-se mais fácilmente com um Felisberto mutilado e solitário.   Contudo, passados anos, já quando o vento do outonoos abanava, gemeu:   -Envelhecemos para  aqui ambos como dois infelizes…   O sacristao encolheu os ombros, resignado.   -Calhou assim…   E nunca o prior soube se a  resposta do Felisberto era uma censura velada, nem o Felisberto se as palavras do prior eram um desabafo  de alma.   Evidente, só a velhice que os mirrava, cada vez mais enrugada e branca.   O padre, trôpego, subia com dificuldade os degraus do altar, e quase que adormecia a ler o missal.   Quanto ao Felisberto, esse tinha uma ronceira no peito que se ouvia do fundo da igreja.   -Eles nao perdoam…   -queixava-se o prior, cheio de reumatismo.   -Já cá cantam setenta e très.   Apesar de mais novo, o Felisberto parecia andar nos oitenta.   Tais eram os estragos da doença e da solidao!   -E tu, quantos?   -Perdi-lhes a conta.   Desde que a Deolinda o desprezara,  o tempo para el deixara de ter medida.   Ou era uma eternidade baça, ou aquel segundo nítido em que ela lhe dissera que nao.   E a própria bronquite como que já facia parte dessa monotonia sem quebras.   -Vai ao médico, homem!   Trata disso!   – teimava o prior, agarrado á vida, apesar dos achaques.

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                    É crónico.   Nao vale a pena.   E o triste, acompanhado da gataria do peito, ia arrastando como podia o seu latim de coadjutor.   Ás veces os acessos de tosse quase que o sufocavam.   Mas lá continuava a mudar o missal e a chegar as galhetas, sem o amparo sequer dum coraçao condoído.   No ramerrao da igreja, a gosma acabou por já nem causar impressao aos fiéis.   -Temos um enterro amanha.   -De quem é?   -Da Deolinda.   Teve um ataque há bocadinho, chamaram-me á pressa para lhe dar a extrema-unçao, e quando lá cheguei estava morta.   É preciso tocar a sinais.   Ficou pensativo, mas o prior nem deu conta.   Saiu da sacristia, foi á torre anunciar a desgraça, e nesse mesmo dia, á tardinha, tratou de abrir a cova da que nao quiserq ser sua mulher por essa razao.   Começou a cavar sem ânimo, aflito por dentro e muito infeliz.   Iam saindo ossos, farrapos, tábuas, – o espólio habitual dos hóspedes passados.   Mas nem reparava.   Só os braços é que trabalhavam.   A sua atençao estava ausente daquelas misérias.   Ou se alheava para atender a um apelo insistente da memória, ou se concentrava no alvoroço do coraçao, a bater descompassado dentro do peito.   Um suor frio, como nunca sentira, começou a humedecê-lo todo.   Gotejante a princípio, alargava-se numa inundaçao.   Pesadas as ferramentas pareciam de chumbo.   Contudo, continuava a manejá-las, numa espécie de automatismo, como uma máquina em movimento que por sí só nao pudesse parar.   Já fundo, quando a campa lhe dava pelo pescoço, o esvaiamento aumentou.  Um garrote invisível apertava-lhe a vida.   Pousou a pá e encostou-se á trincheira.   -Estou pronto.   O lusco-fusco embainhava de tristeza maciça os quatro ciprestes que guardavam os cantos do cemitério.   Nos buxos alinhados havia uma paz cansada, de sono.   -Acabou-se o fadário…   Num adeus quase indiferente, rolou a cabeça á superfície do mundo, como um roberto que nao tivesse corpo.   Cruzes e mais cruzes…   Valeu a pena!…   Depois, sem forças para sair do buraco, aninhou-se nele  o melhor que pôde.   -Esta é para mim…   -murmurou.   -A dela que lha faça quem quiser.   Escusava de ter medo , afinal…

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miguel torga

O COMÉRCIO

                    O comércio é talvez indispensável nas formas de sociedade que conhecemos.   Cria riquezas, desperta invejas, dá lugar a guerras grandes e pequenas, dá trabalho a milhoes.   Todavia, para mim, numa escala de valores das actividades humanas, o comércio nao ocupa um lugar de destaque.   E se num futuro remoto, por milagre ou engenho, o mundo conseguir realizar os ideiais da liberdade, igualdade e fraternidade, e o homem deixe de ser o lobo do seu semelhante, é bem possível que o comércio desapareça.   Entretanto, poderosos ou humildes, negociando em música, platina ou agrioes, os que nele se ocupam desunham-se a comprar, a vender, a trocar, a revender, a enganar, a roubar, empurrados pela ânsia do lucro e pela satisfaçao do instinto.   Mas talvez porque Deus me negou as qualidades precisas para, mesmo de forma simples, negociar com êxito, o comércio sempre exerceu sobre mim um singular fascínio.   E perco-me a imaginar que sonhos viverá o comerciante que hoje deixou este folheto na minha caixa do correio.

                      EXÓTICA – Centro de Serviços

                   Grande sortido de cosméticos para cabelo preto

                   Cartoes pré-pagos para telemóveis

                   Bilhetes de aviao para todos os destinos

                  Transporte aéreo e marítimo de mercadorias para o Suriname

                 Câmbio de moeda estrangeira

                 Transferências de dinheiro

                 Venda de caixas em vários tamanhos

                Conservas e bebidas

J RENTES DE CARVALHO       

PUNTUALIDADE E DEMOCRACIA

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Puntualidade portenha.

                    O professor Katzenmayer estivo com nós o domingo pola tarde e prometeu-nos com teutónica solemnidade voltar o dia seguinte.   Mas transcurridas segunda, terça e quarta feira, do ilustre antropólogo e folklorista xermano-arxentino non tivemos notícias; parecia um aviador sudamericano em pleno “raid” continental.   Por fim onte, o professor Katzenmayer fixo-nos passar a sua tarxeta, unha tarxeta de sete por quatorce centímetros que qpenas alcança a conter a mitade dos seus títulos académicos.   -Non puiden assistir puntualmente ó meu encontro -dixo-nos a guisa de disculpa  -porque estiven estudando a question da puntualidade portenha.   Asombre-se você:   descubrin que os portenhos son tan puntuais como os ingleses.   Non se lhes nota:   mas son-no.   O que passa é que o portenho non acredita na puntualidade dos demais;   enton, por cortesia, chega unha hora ou duas mais tarde.   Apresentar-se á hora convida seria obrigar a outra pessoa a oferecer escusas humilhantes.   A sua delicadeza obriga-o assim a retrassar-se.   Os portenhos bem educados son de unha cortesia somente comparábel á dos xaponeses.   Y de essa combinacion entre a cortesia nipona e a puntualidade britânica resulta a aparente informalidade  arxentina.   

O portenho na rua

                    – Você cré ser aparente a nossa clássica impuntualidade?   Sim, senhor.   É o resultado d’unha suxestion colectiva.   Todos acreditamos que os demais non concurrirán á hora e,  em consequência, non nos apressamos, para non deixá-los em descuberto.   -Observe Você Doutor Katzenmayer, que está falando em primeira pessoa do plural ó referir-se aos portenhos.   -É que eu sou xermano-arxentino.   Sinto-me alemán pelas minhas qualidades e portenho pelos meus defeitos.   -Muitas graças.   -Non há de qué.   É a maneira como nos naturalizamos os extranxeiros.   Mas non me arraste você, ó vício arxentino da divagacion.   Estabamos falando da puntualidade.   O portenho é puntual. mas é um homem que cede fácilmente ás tentacions.   Quando  sai á rua está decidido a chegar onde se propon;   mas a rua está pragada de amigos que o palmeian e o detenhen a conversar.   Um, dous, tres amigos no espaço de poucas  quadras.   Ó quarto amigo, o homem que vai a este encontro perdeu quince minutos e recibiu quatro versions diferentes do último chisme político e outros tantos datos contradictorios para as carreiras.   Xá perdeu todo entusiasmo por chegar a tempo:   detem-se ante as vidreiras e deixa ir os seus olhos e a sua imaxinacion detrás das mulheres.   Por sua parte, ó outro concurrente á entrevista tamém lhe passou o mesmo.   E quando por fim, os dous se encontran, unha hora e meia despois do convido, trocan um saúdo e unha mentira.   O portenho é puntual por natureza, mas non acredita na puntualidade;   assim como é demócrata por temperamento sem crer na democracia.   De ahi que se retrase nos encontros, despois de importunar na sua casa a todo o mundo para non chegar tarde; e que falando de política todo o ano, deixe de votar quando chegan as eleicions.   O portenho é um ser contradictorio,  e eu como investigador, lamento muito que a sua raza se vá extinxindo.   Porque non todos os habitantes de Buenos Aires son portenhos.   Despois deste exordio, o doutor Katzenmayer entrou em matéria.   Falou largamente sobre as abelhas selváticas da zona subtropical da República, sinalando o cronista a impossibilidade de extrair cera dos panais das lechiguanas.   Mas como o doutor Katzenmayer fixo várias citas, e como por própria confession é portenho nos seus defeitos, por conseguinte as referencias equivocadas son um vício portenho, necessário será ratificar os seus datos antes de dar-lhes publicidade.

 

ARTURO CANCELA

OS LIBROS

                    Na minha sala de trabalho haverá cerca de cinco mil libros.   Muitos deles poderiam ser atirados ao lixo e nao seria perda.   Mas eu, que me sei sem espírito de coleccionador, nao consigo separar-me de libro nenhum.   Alinhados nas estantes como campas num cemitério, corro-lhes as lombadas com os olhar e todos eles, bons ou maus, chamam uma recordaçao.   Difícil é o nao entristecer com tantos autores geniais que nunca fui capaz de seguir nem apreciar – ó miséria das correntes, das escolas e das modas! – , mas a quem era devido prestar homenagem, e prudente, porque de boa política, copiar o exemplo dos seus nebulosos escritos.   No essencial do mundo, pouco ou nada muda, razao por que as mais das veces o rei ainda vai nu, e continua a ser de bom aviso nao dizê-lo de modo que todos  oiçam.

J RENTES DE CARVALHO 

UM ROUBO

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          Foi numa noite medonha, cheia de água e gelada, que o Faustino assaltou a Senhora da Saúde.   Há tempos já que a ideia desse roubo o obcecava, mas a mulher e o demónio duma hesitaçao imbecil tinham-no afastado disso.   Ainda bem que o destino acabara por dispor as coisas de maneira a que ele pudesse finalmente realizar o sonho.   Punha-se a deitar contas á vida, ás casas da povoaçao onde lhe fosse possível arranjar meia dúzia de vinténs para matar a fome naquela grande invernia, e nada, a nao ser a Senhora da Saúde.   Mas é que nada!   Abaças era uma terra pobre.   Dinheiro , do contado, só o Albertino.   Infelizmente, ao Albertino, tudo menos mexer-lhe num gravelho.  Forte e valente como um toiro, ainda por cima dormia de caçadeira encostada ao travesseiro.   É claro que havia o recurso de alargar os olhos pelas aldeias vizinhas.   Sómente: além de o temporal tolher os passos ao mais honrado, como o ano ia de fome, todos viviam de olho aberto e de porta  trancada.   De resto, nao se sentia já com forças para repetir a façanha de Freixoedo.   Cinco costelas partidas sao muitas costelas.   Sem contar – e aqui  é que a porca torcia o rabo – com o aviso solene do juiz:   -Dou-lhe apenas quatro meses, atendendo a que já foi bem convidado e que é esta a primeira vez que aqui me aparece.   Mas nao volte!   De contrário, perca o amor á liberdade.   Ora, uma coisa é passar uns dias na cadeia. de Alijó, e outra ver-se um homem metido numa penitenciária a vida inteira.   Apertada por tal arrocho, a imaginaçao do Faustino sucumbia.   Até que,ressuscitada por aquele buraco no estômago que nenhum aguaceiro enchia, começou de novo a namorar a Senhora da Saúde, rica e desamparada na serra.   Nem juiz, nem testemunhas, nem o delegado a berrar…   Nada.   Decididamente, o grande tiro era ali!   Naquela noite, depois dum caldo que nem a caes, e de todas as demais hipóteses arredadas, a miragem voltou, mas já sem a indecisao das tentaçoes anteriores.   Nao havia que ver.   O sítio nao podia ser melhor; á porta, bastava-lhe um empurrao; o resto, quê?  Acender uma vela das do altar, forçar a fechadura da caixa das esmolas, encher  o bolso, e ala morena.

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         A mulher, sem migalha de pao na arca e sem pinga de azeite na almotolia, sabia bem que o remédio habitual daquelas penúrias  era ir buscá-lo onde o houvesse.   Mas quando o homem, á meia voz, começou a repisar a ideia,  desaprovou mais uma vez o projecto sacrílego.   A outro lado qualquer, estava de acordo.   Á Senhora da Saúde, nao.   O Faustino nem a ouviu, ocupado como estava no labor de semear a boa semente na terra podre dos últimos escrúpulos.   Debruçado sobre as pernas, com os dedos dos pés a espreitar das meias rotas, continuou a aquecer-se aos tiçoes apagados, a chupar a pirisca do cigarro e a enumerar  uma por uma as mil vantagens do negócio.   Coisa realmente fácil, sem nenhum perigo, e que trazia a soluçao do aperto em que estavan.   Por ser capela?!   Valha-nos Deus!   O essencial é que na  caixa houvesse algum…   Ao menos cem mil réisinhos!   Ha?!   Pois nao teria sequer cem mil réis?!   Interpelava a companheira, que nao colaborava já de nenhum modo naquela luta.   Embrulhada no xaile puído,  aninhara-se quase em cima do borralho, e fechava os olhos.   O Faustino teve de responder ás suas próprias perguntas.   Cem mil réis, e a contar muito por baixo.   Até era ofender a Santa, supô-la com menos capital na arca.   Á medida que ia pondo na balança as justificaçoes do seu desejo, o Faustino via oscilar o fiel da decisao, e pender para o  lado que lhe convinha o prato reluzente da fortuna.   Nao havia que ver.   As coisas eram o que eram.   A evidência metia-se pelos olhos dentro.   Por volta da meia noite as derradeiras amarras da consciência acabaram de ceder.   Raios partissem as horas que gastara a pensar na morte da bezerra!   Há certas alturas em que a gente, em vez de miolos, parece que tem aranhas no toutiço!   Ergueu-se.   Do Faustino titubeante, quase a deixar fugir a sorte que tao generosamente lhe sorria, já nao restavan sinais.   Agora estava de pé um homem magro, baixo, de barba restolhuda e olhos de azougue, vivo, flexível, decidido como uma doninha.   A mulher nem dormia nem velava.   Continuava engrunhada no seu canto, distante, como se o frio a tivesse entorpecido ou uma grande dor silenciosa e funda a roesse por dentro.   Ele também lhe nao falou.   Ladrao agora duplamente culpado diante da desaprovaçao dela, foi á loja buscar os precisos e desapareceu na escuridao do quinteiro, sombra muda a esgueirar-se na sombra.

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          O temporal bramia pela aldeia fora.   Ouvia-se a nortada a pregar nos braços dos castanheiros e as bátegas a cair nas estrumeiras encharcadas.   Um taró de repassar fragas.   Faustino, vencidos cautelosamente  os cem metros da quelha em que morava, meteu-se á serra.   Apesar de o vento galego o empurrar para trás, para o frio enxuto da casa, caminhava depressa.   Uma vez que encontrara forças para tomar a única resoluçao acertada, era preciso nao demorar.   Infelizmente, a Senhora da Saúde nao ficava logo ali.   Quase no termo de Valongueiras, distava de Abaças, uma boa meia hora.   Ainda por cima, caminhos maus.   Ou lajes com relheiras que lembravam rugas em coiro de atanado, ou entao saibro ensopado e atoladiço.   Trilhos escomungados!   Mas desembelinhava as canelas o melhor que podia, , e meia hora, que afinal queria dizer meia légua, passa depressa.   É questao de um homem ir deitando contas á vida enquanto as pernas passeiam.   Cem mil réis, na pior das hipóteses, estavam-lhe no papo.   Só muito azar.   Mas nao.   A Senhora da Saúde governava-se…   Nem havia outra tao agenciadeira nas redondezas…   Na carvalhada da Arca os pensamentos mudaram-lhe de rumo.   A tosca memória erguida pela morte do Joaquim Teodoro, assassinado naquele sítio, chamou-o a uma realidade mais dura.   O Joaquim Teodoro, ao cabo, era ladrao também.   Nao de caminhos nem de igrejas, é certo,  mas de roletas, que dá mais e sem nenhum trabalho.   Basta lume no olho e dedo.   Justamente o forte do Joaquim Teodoro…   Que habilidade!   Isso entao na vermelhinha nao havia segundo!   O mais pintado entregava-lhe ali o seu e o de quem calhasse.   Artes do diabo!   Mas o Videira, quando no dia da festa lhe passou para as maos o último tostao, jurou-lhe que no ano que vinha nao vigarizava ele mais ninguém.   Dito e feito.   E ali estava agora a alma do Joaquim Teodoro pintada a branco no granito, entre linguas de fogo, de maos erguidas a pedir um padre-nosso!   E se ele, Faustino, tirasse o chapéu e atendesse a imploraçao?   Um padre-nosso antes de roubar a Senhora da Saúde, tinha a sua graça!   Apesar de travado por estes pensamentos desconsolados, caminhava depressa.   E, á medida que a carvalhada foi ficando para trás, a imagem do Joaquim Teodoro começou a desvanecer-se.

106          Insensívelmente, todo ele ia aderindo á realidade erma e negra que o cercava.   Também onde o raio da Santa viera fazer o pouso!   Era mesmo desafiar um homem.   O pior é se,…   Mas nao.   A sorte dele havia de ser tao caipora, que encontrasse a caixa sem um vintém?   A esta íntima interrogaçao, os olhos responderam-lhe bruscamente que chegara.   A dois palmos do nariz viam-se as paredes da ermida a reluzir   Embora gatuno de profissao, pois que nao se podia chamar cesteiro a quem só lá de tempos a tempos fazia um cesto por desfastio, Faustino, mal deu de chofre com a capela, teve um baque no coraçao.   E parou.   Nunca assaltara nenhum lugar sagrado. Sempre era roubar a Senhora da Saúde!   Mas a hesitaçao durou um minuto apenas.   Molhado da cabeça aos pés,  o próprio organismo é que o impeliu para a frente, para dentro de uma casa com telhado.   Nao havia tempo a perder de maneira nenhuma.   Nem o corpo, nem o espírito lhe podiam consentir uma fraqueza em semelhante ocasiao.   Para diante é que era o caminho!   Num ímpeto, chegou-se á porta e meteu-lhe o ombro.   Pois claro, como tinha previsto…   Escancaradinha!   Com a respiraçao suspensa e todo num formigueiro, entrou de rompante no poço de escuridao.   Dentro, o primeiro impulso do seu instinto foi fechar a porta de novo.   Mas a razao, chamada a contas, discordou.   Homem, pelo sim, pelo nao, deixar o trânsito desimpedido!   Riscou um fósforo, de cabelos em pé.   Até se desconhecia!   Ninguém as calça que as nao borre, bem se diz lá!…   Na luz incerta que se fez, pôs-se a olhar febrilmente para todos os lados e a ouvir ao mesmo tempo, de orelha fita, o silêncio pesado da capela.   Felizmente, nada.   Imóveis e espantados, os santos pareciam surpreendidos, mas nao faziam um gesto para defender a moradia.   Realmente, todos de pau! Que sossego!   Chegava a parecer mentira que uma casa de Deus tivesse de noite um ar tao desgraçado.   Nos palheiros, ao menos havia ratos!   Deu alguns passos.   Como o fósforo estava no fim e já lhe aquecia os dedos, riscou outro.   Menos inseguro, subiu as escadas do altar de S. José, logo á entrada.   E, quase serenamente, acendeu a vela dum castiçal.      

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          A  igreja clareou quanto  a luz pôde.   E, mais iluminada, tornou-se ainda mais simples, mais natural.  As imagens já nem sequer o ar atónito de há pouco conservavam; e o resto, francamente, sem nenhum ar divino.   Toalhas, bancos, jarras…  O trivial.   Tanta mortificaçao inútil!   Voltou-se.   A caixa das esmolas estava ao fundo, enterrada na parede que ligava o templo ao cabido.   Era do lado de fora, pela fresta cavada na cantaria que os devotos deixavam cair a  boa massinha.  Pinga que pinga…   Uma mina!   Com passos de lâ, chegou-se.   Caramba, seria que nao estivesse a abarrotar?!   Pôs a luz no chao, e meteu maos á obra.   Se calhar tinha que escaqueirar a tampa á martelada…   Mas nao é que a fechadura parecia de papelao e cedia ao cinzel sem resistência nenhuma?!   Tudo ás mil maravilhas…   Um mês de tripa forra njnguém lho tirava.   Desgraçadamente, a caixa estava limpa.   Ou fora roubada, ou a esvaziara o padre Bento na véspera, ou entao ja nao havia fé neste amaldiçoado mundo.     Ah! mas ele, Faustino, nao se deixava enganar assim.   Nao.   Tivesse a Senhora da Saúde paciência.   Lá  pouco dele, isso vírgula!   Vinha com boas intençoes.   Obrigavam-no, pronto: ia o que houvesse, e passava tudo a patacos.   Pegou de repelao no castiçal e avançou indignado para o altar mor.   Nao acreditava que no sacrário a miséria fosse também assim.   Era.   Os dois SS entrelaçados na portinhola queriam dizer apenas um buraco escuro, vazio, onde os seus dedos resolutos tactearam em vao.   Ladroes!   Filhos duma grande…   Nem ao menos o cálix!   O que vale é que havia ainda a sacristia para revistar.   E que nao estivessem lá os apetrechos devidos!   Ia á casa do do abade, que lhe havia de pôr ali o que pertencia á santa…   O cálix, a cruz, o turíbulo, tudo.   E a bagalhoça, claro.   Pouca vergonha!   Investiu pela sacristia dentro.   Queria ver quem levava a melhor.   Mas qual o quê!   Estava mesmo roubado.   Flores desbotadas de papel, tocos de círios, um crucifixo partido…   Que cambada!   Desanimado, pegou na luz.   Larápios!   Á medida que o desespero tomava conta dele, perdia o resto duma precauçao que  a prudência lhe aconselhara.   Falava alto, rogava pragas, caminhava pela capela abaixo com a indignada razao de quem andava na sua propría casa a verificar os danos dum assalto de bandidos!   Canalhas!   Até que chegou ao fim da nave.   Olhou ainda os altares num relance.   Os santos lá continuavam parados como há bocado, e a olhá-lo agora a modos de caçoada.   Sim senhor, uma linda figura de pedaço de asno que fizera diante deles!   Pôs o castiçal no chao, soprou á vela, puxou a porta e saiu.

 

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           O temporal redobrara de fúria.   A atravessar o adro, com a desilusao a percorrer-lhe as veias,  é que via bem como a escuridao era cerrada e como a chuva lhe trespassava o corpo.   Porca de vida!   Um homem a fazer por ela, a aguentar no lombo uma noitada daquelas, para ao cabo dar com o nariz no sedeiro!   Na carbalhada da Arcâ já os ombros, de entanguidos, se lhe queriam meter pelo pescoço dentro.   Filhadinho!   A roupa ia-lhe tao colada ao corpo que parecia que era a pele.   Cadela de sorte!   Na curva, lá estava outra vez a alma do Joaquim Teodoro a pedir o padre-nosso.   Para que lambesse o Joaquim Teodoro!   Padre-nossos, padre-nossos, ia-se a ver, e a caixa da Senhora da  Saúde sem um vintém!   Ah!   mas o abade punha-lhe ali a massa e o resto com língua de palmo.   Oh, se punha!   Ás quatro da madrugada entrou em casa.   Como um pitinho!   A mulher lá estava ainda no mesmo sítio, calada, triste, longe da vida.   Nao lhe falou.   A escorrer água, gelado, foi direito á cama, despiu-se e meteu-se entre as mantas a bater os dentes.   Pela manha ardia em febre.   E daí a seis dias, depois de um cáustico lhe abrir no peito uma bica de matéria e de o barbeiro de Parada o ter desenganado, foi preciso chamar o confessor, a ver se ao menos se lhe podia salvar a alma.   Veio entao o padre Bento, manso, vermelho, tranquilizador.   Mas o Faustino delirava.   E mal o santo homem, de sobrepeliz, lhe entrou pelo quarto dentro, arregalou os olhos, inteiriçou-se no catre, apontou-o á mulher e aos circunstantes, e com a voz toldada da bronco-pneumonia, rouquejou:    

                     -Ladrao!   Prendam-no, que é ladrao!

MIGUEL TORGA

A TERRA

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          Nascido de gente que através dos séculos amanhou terra, viveu da terra, gente que via na posse de terra nao somente uma garantia de vida mas também uma forma de felicidade, sinto-me estranhamente desapegado do campo.

          As emoçoes que me dá uma serrania, um vale fértil, um lusco-fusco no monte, a alegria que me causam as cores do Outono, tudo isso sou capaz de pôr em texto mais ou menos escorreito (hélas, sempre insatisfatório).  Todavia, esse descrever é uma arte, nao é um sentimento.  E embora goste de subir a um pico, descer uma encosta, aspirar os cheiros dum pinhal, nao me peçam para podar uma vinha ou colher azeitona.

          Essa aversao ao esforço físico que o trabalhar a terra exige, levo-a á conta do muito que as geraçoes  dos meus antepassados sofreram na lavoura.  Sacrificaram-se eles para que eu me pudesse libertar, e tao radicalmente me libertei que até da carga genética me desfiz.

J RENTES DE CARVALHO

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OS PROSTÍBULOS DA BAHÍA

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         “Ficavam os dous em prossa animada, de conteúdo invariável, a vida dos prostíbulos da Bahía, tema apaixonante para Justiniano Duarte da Rosa.  Dan conquistara-lhe a confiança, juntos haviam  ido á  pensao de Gabi beber cerveja e ver as mulheres.  Enquanto, encostado ao balcao do armazém, faz uma análise crítica da alta prostituiçao local.   Daniel, nas barbas do implacável capitao, arrasta a asa á Tereza, na muda linguagem dos olhares e sorrisos carregados de sentido, prepara o terreno.  -Material de terceira capitao; o da nossa Gabi.  Francamente mediocre.   -Nao me diga que nao apreciou aquela garota, nao tem nem trés meses na vida.  -Grande coisa nao era.  Quando o capitao aparecer na Bahía vou-lhe servir de cicerone, vou lhe mostrar o que é mulher.  Nao me diga de novo que conhece a Bahía muito bem, quem nao frequentou o castelo de Zeferina nem esteve na casa de Lisete, nao conhece a Bahía.  E nao me venha de polaca de Aracaju porque loura de verdade,  platinium-blonde de facto e nao de cabelo pintado, vou lhe mostrar, e que classe!  Me diga uma coisa, capitao; já lhe fizeram alguma vez o buchë árabe?  -Buchê, milhares, sou apreciador, mulher que deita comigo tem de manejar a língua.  Mas esse tal de árabe nao sei como seja.  Sempre ouvi dizer que buchê é coisa francesa.  -Pois nao sabe o que é bom.  Essa loira que vou lhe apresentar é especialista, é uma argentina de barulho.  Rosália Varela, canta tangos.  Prefiro na cama, cantando nao é lá essas coisas.  Mas, para chupar, nao tem rival.

No buchê árabe, entao, é sensacional.  -Afinal, como é esse negócio?  -Nao conto porque se contar perde a graça, mas, despois de provar, o capitao nao vai querer outra coisa.  Só que Rosália exige o vice-versa.  -Que história é essa do Vice-versa?  -O nome está dizendo: vice-versa, toma lá, dá cá, ou seja o conhecido sessenta-e-nove.  -Ah! Isso nunca.  Eu, chupar mulher?   Uma que me propôs, uma vagabunda que apareceu por aqui lendo sorte de cartas, quebrei a cara da filha da puta, para nao ousar outra vez.,  Mulher chupar homem, está certo, é lei natural, mas homem, que chupa mulher, nao é homem, é cachorro de francesa; me desculpe se lhe ofendo, mas é isso mesmo lulu de francesa.   -Aprendera a expressao com Veneranda, repetia com orgulho.  -Capitao, o amigo é um atrasadao, mas quero lhe ver nas maos de Rosália fazendo tudo que ela quiser, lhe digo mais de joelhos, pedindo para fazer.  -Quem?  Eu, Justiniano Duarte da Rosa, o capitao Justo?  Nunca.  -Quando vai á Bahía, capitao?  Marque a data e eu aposto em Rosália a dez por um.  Se ela falhar, a festa nada lhe custa, é de graça.  -Só que eu vou á Bahía por esses dias, logo despois das festas.  Recebi um convite do governador para a festa do Dois de Julho, a recepçao no Palácio.  Foi um amigo meu que é da polícia quem arranjou.  – Demora por lá?  Quem sabe, ainda lhe alcanço.  -Nem eu sei, depende tudo do juiz, tenho uma pendência no forum, Aproveito para ver os amigos nas secretarias, gente do governo,  conheço muita gente na Bahía e os assuntos daquí, abaixo dos Guedes, quem resolve sou eu. Vou demorar bem uns quince dias.  Para mim é ponto de honra.  Mas façamos o seguinte, eu lhe dou uma carta para Rosália, o amigo a procura em meu nome no Tabaris.  -No cabaré Tabaris?  Conheço, já estive.  -Pois ela canta lá todas as noites.  -Entao está certo, me dê a apresentaçao e vou conhecer esse tal buchê árabe.  Mas avise a ela  para me respeitar, é ela em mim,  e acabou-se se nao quiser apanhar.  -Homem macho nao se rebaixa a isso.  Escreva para essa dona, diga que pago a ela direito mas que me respeite, nao debique de mim.  Quando me zango, nao queira saber.  Tanta fama de mau, um bobo alegre, concluía Daniel.  Que outra coisa pensar de um tipo que pendura no pescoço um colar com argolas de ouro a lembrar cabaços de pobres roceiras?  Arrotando macheza enquanto em sua casa Daniel seducia Tereza.  Seducia Tereza.  Sem querer, sem saber porque, á rebelia da sua vontade,  Tereza responde os olhares – que olhos mais tristes, mais azuis e funestos, a boca vermelha, os anéis do cabelo, anjo caído do céu.  Quando se foram rua afora, conversa de non acabar, Tereza escondeu no peito a flor trazida por ele.  Nas costas do capitao, Daniel lhe mostrara a rosa fanada e tendo-a beijado, no balcao a pousou.  Para ela a colhera e beijara, no seboso balcao uma rosa vermelha, um beijo de amor,”.   

JORGE AMADO

                   Claro que ésta história vai acabar mal, porque entran em xogo os ciúmes, a traiçao e a morte.   Mas por outro lado acaba bem, porque triunfan a liberdade e a xustiça.   Tereza e Daniel fan-se amantes, na própria casa do capitao Justiniano Duarte da Rosa, durante a sua viáxem de prazer á Bahía de todos os santos.   Mas as futuras pretendentes do nosso descarriado Daniel, atentas e despeitadas escrevem unha anonimamente venenosa carta ó antedito chifrudo.   Este, enviste furibundo contra o pobre rapaz, e quer obriga-lo a facer-lhe um tal “Buchê” em plena praza pública, diante de toda a xente.    Mas quando todos semi-tapavan os olhos perante tan indecoroso espectáculo,  aparece Tereza Baptista com a faca da carne seca, e trincha definitivamente a vida de Justiniano Duarte da Rosa, mais conhecido como o porco.

léria cultural

IKEA

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          Ikea, em Amsterdam.  Um sem-fim de metros quadrados de móveis e pertences caseiros, o público engenhosamente obrigado a caminhar num labirinto de voltas para que, com o cansaço da caminhada, se lhe abaixe a resistência á tentaçao e ás compras impulsivas.

          Num dia como hoje andan ali milhares de pessoas. Uma ou outra apressada e decidida, a maioria em estado de transe, o olhar mortiço, a arrastar os pés, acarneirada, silenciosa.  Multidao de tal modo fascinante que, ás tantas, adio o que lá me levou e, acarneirado também, vou com ela, passo dos sofás ás cozinhas, das camas aos quartos de banho, das toalhas aos talheres.  

          Para que os pais nao tenham de dividir a sua atençao entre o desejo de comprar e a obrigaçao de atender os filhos, estes podem ser deixados num espaço á entrada, “O Paraíso Infantil”, onde os xogos, os brinquedos e o carinho profissional das raparigas que lá trabalham ajudam a passar o tempo.

          De súbito, naquel ambiente de passos lentos e conversas sussurradas, ouve-se dos alto-falantes uma voz sonora: “Atençao, por favor!  Jeannette, Carolin e Peter pedem aos pais que os venham tirar do Paraíso Infantil.”

          É absurdo, é cómico, e contudo ninguém sorri.

J. RENTES DE CARVALHO

Imaxe

AS ÚLTIMAS HAMADRÍADES

 

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A VINHA E A FIGUEIRA

          D. Bartolomé  Gordillo viu a luz por primeira vez em Buenos Aires alá polo mes de xaneiro de 1862.  Nunca esta metáfora inevitável nas biografias estivo mais xustificada que no presente caso, pois D. Bartolomé nasceu de día, no mes mais luminoso de Buenos Aires, e nunha casa como as daquel tempo, visitada constantemente polo sol: dez  habitacions corridas, com dous pátios, o último dos quais sombreado por unha vinha tradicional e, ó fundo, xunto com os granados e a frondosa magnólia, a figueira familiar.  ! A vinha e a figueira !  Como as fadas tutelares dos contos de nenos, tinhan-se inclinado sobre a sua cuna y murmurado, ó sopro da brisa vespertina, bençoes e promesas.  Para os páis -parexa romântica de cenhida levita e pomposo mirinhaque – aquela axitacion das folhas sobre a cabecita loura do seu primeiro filho non significou outra cousa senon que tinha começado a levantar-se vento.

          -Há que recolher a cuna -dixo o pái-, está a refrescar.

           -!Desidéria! -gritou a senhora, abandonando a mecedora.

          Veio a mulata e entre ambas levaron o pesado berce desde o qual o menino sorria para os pesados racimos xá com pintor.

          Desde aquela sua primeira saída ó patio, o pequeno Bartolomé tivo duas madrinhas ignoradas, duas divindades benévolas que velaron por el com misteriosa fidelidade.  De neno, os seus frutos fixeron-lhe conocer a inquietude do desexo, a dita efímera do goce.  De xovem, a sua sombra aliviou-lhe a cachola transtornada pela declinacion dos casos latinos e das miradas profundas das bellas portenhas.  De home…

OS FRUTOS PRODIXIOSOS

          …de home D. Bartolomé Gordillo non tivo mais apoio na sua existencia que  a sua vinha e a sua figueira.  Non quer dicer isto que, como os personaxens dos contos de Lucas Córdoba, tenha passado a sua vida á sombra d’unha e apoiado no tronco da outra, alimentando-se parsimoniosamente dos seus frutos, senon que graças ás suas brevas famosas e á perfeiçon dos seus dourados cachos, logrou a consideracion dos seus xefes, a simpatia dos seus vecinhos e a assiduidade de uns parentes lonxanos cuxos sentimentos familiares parecian agudizar-se com a entrada do outono.

          O cólera do 78 tinha-lhe arrebatado seus páis e orfao aos deçaseis anos sem outra companhia no seu velho caseiron que a de unha tia solteirona, começou a sua vida consciente, desprovisto de axuda, proteccion e conselho.  Tímido, humilde, vestido sempre pela sua tia á moda dos anos sessenta, o xovem Bartolomé Gordillo passou a sua primeira mocedade transportando cartas de recomendacion de uns personaxems a outros, sem alcanzar xamais o emprego prometido.  Até que um día, a velha solteirona tivo a xenial ideia de acompanhar a miléssima carta obtida com unha bandexa de brevas e, !oh prodigio!, o nomeamento apareceu á semana seguinte.

O SEGREDO DO ÉXITO

          Despois deste prodixioso resultado, D. Bartolomé Gordillo colgou para sempre a levita de rigor com que acompanhava á misa a sua tia e facia as suas inveteradas visitas de postulante, e vestiu, tamém para sempre, a chaquetinha de alpaca do empregado nacional.  Pero vestiu-a com certa seguridade, com a supersticiosa confianza nos seus figos.

          Quando chegava a estacion comezava a distribui-los por rigoroso ordem xerárquico.  Desde o ministro até ó seu superior inmediato, todos os funcionários da reparticion conheceron, unha vez por ano, o pracer de saborear as suas brevas roxas e azucaradas, as mais temperâns e doces de todo o “barrio del Alto”.  Quando non, eran os racimos dourados nos que vinha apressada a luz das tardes outonais.

          Deste diezmo anual non se falava nunca abertamente na oficina.  Somente, alá pelos fins do vrán, acostumava ocurrir que, inclinando-se sobre a mesa, o seu xefe pregunta-se:

          -¿E, Gordillo, como anda isso?

          -Pintando, D. Roque.

O ASÉDIO Ó SOLAR

          Á sombra da figueira D. Bartolomé foi cumprindo unha discreta carreira administractiva.  com o andar dos anos tinha ido quedando-se sem parentes nim amigos.  A tia solteirona morreu pouco despois do primeiro ascenso; os parentes foron “desaparecendo” e a descendencia desparramou-se; os velhos vecinhos, tras a intendencia de D. Torcuato, tinhan deixado as suas casas e, um detrás d’outro, mudáron-se para os novos bairros do norte.  D. Bartolomé, quedou como único testemunho do passado senhorial daquela rua na qual tinham morado os virreis, os xenerais da independencia e os ministros da Federacion.  Mas quando lhe preguntavan se vivia só replicava com perfeita sinceridade:

          -Non, tenho unha vinha e unha figueira.

          As duas hamadríades seguian influindo favorábelmente no destino burocrático e na consideracion do “velho Gordillo” e este lhes devolvia o favor com os seus cuidados assíduos e unha lealdade a toda proba

          Por elas recusou vender a casa todas as veces que lho propuxeron, que foron muitas.  Desde a presidencia de Juárez até a de Alvear, em todos os períodos de alza da propriedade, os comissionistas e especuladores intentaron vanamente convence-lo com o oferecimento de quantidades sempre crescentes; mas D. Bartolomé sorria e movia a cabeza.

          Foi así como o velho solar dos Gordillo quedou enclavado em pleno centro, como um resíduo esquécido de tempos ídos.  Ó transpor o seu umbral um retrocedia tres largos quartos de século.

AS ÚLTIMAS HAMADRÍADES

          Non podendo vence-lo de frente, o progresso foi-o cercando com astúcia.  Primeiro foi unha enorme casa de departamentos que, elevando-se pelos fundos, privou da primeira luz da manhan a sua pequena horta.  Esse ano as brevas foron mais pequenas e maduraron com retraso.  Despois, pelo costado do norte, elevado edificio de oficinas levantou as suas paredes lisas que assombraron o xardin e os dous pátios ó passar do meiodia.  Ésta vez a vinha secou e as brevas foron escasas.  Por último, no passeio d’enfrente medrou um grande cinematógrafo que lhe cortou a última luz do crepúsculo, ainda que, irónica compensacion, o inundava, pola noite com os refléxos roxizos dos anúncios luminosos.

          D. Bartolomé Gordillo foi secando-se xunto com a sua figueira.  O vrán passado desde unha das xanêlas altas da vecinha casa de departamentos, ainda se podia velo, sentado frente a ela, espiando com ansiedade os últimos signos de vida da sua árbore tutelar.  Os dous ancians morreron xuntos no final da estacion.

          Hoxe, o solar atopa-se abandonado e os orgulhosos edificios que o rodean ignoran que mataron -asfixiando-as como nunha mazmorra -as últimas hamadríades de Buenos Aires.

arturo cancela

 

O SOFRIMENTO DOS ANIMAIS

          Para minha vergonha tenho de admitir que durante muito tempo julguei que o sofrimento dos animais me tocava menos que o do meu semelhante.

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          Pelos vistos era ilusao que me dava, ou resultado de algum mecanismo de autodefesa do subconsciente que, creio, vai fraquejando com o correr dos anos, pois hoje em dia o presenciar da dor do mais humilde dos bichos torna-se-me intolerável.

            Aqui na aldeia, entre gente insensibilizada por hábitos seculares de maus-tratos ás bestas de carga e aos animais domésticos ou selvagens, quando alguém desata aos pontapés a um cao ou ás varadas a um burro, o remédio é fechar os olhos, fazer-me surdo, e algumas veces deitar a fugir.

                 Meter-me de permeio nao seria aceite.  Ninguém compreenderia a razao de semelhante atitude, e resultaria infalivelmente em me tornar objecto de ridículo e desdém, o que num meio pequeno tem consequências iguais ás da antiga pena do ostracismo

               Forçado, pois, a aceitar a minha cobardia, evito o mais que posso as situaçoes peníveis e, usando de manhas, uma vez por outra consigo desviar a atençao dos carrascos – há-os de ambos os sexos – o tempo suficiente para que a vítima lhes escape ou eles, distraídos, esqueçam o tormento.

          Mas a vida, com as suas infindas surpresas, apraz-se a provar a futilidade dos nossos esforços.  E assim hoje, quando ao fim da tarde parei á porta do senhor Guedes para dois dedos de conversa, nao vi mal em aceitar o convite que me fazia para, na sua sala, me mostrar “uma coisa muito linda” que lá tinha.

          Entrámos, sentei-me num aparatoso sofá coberto de plástico, a penumbra das persianas corridas mal deixando aperceber o que me rodeava.

          Hospitaleiro, o meu anfitriao foi ao armário, tirou a garrafa de porto e dois cálices.  Encheu-os, bebemos um gole, falámos do calor, do reumatismo, do descaso que os médicos fazem dos doentes, da sabedoria de há anos termos ambos deixado de fumar.

          Bebemos outro gole. Falámos da pena que é os padeiros já nao cozerem pao de centeio, tao saboroso e bom para a saúde, e da tolice das pessoas que deixaram de plantar tomates, cebolas, couves, batatas, e preferem ir comprá-los á mercearia.

          Entao, que coisa é que me queria mostrar? – perguntei, ao ver que a conversa se arrastava.

          -Pu-la esta manha na cozinha, mas já lha trago.

           Levantou-se, praguejando baixinho contra as dores nas costas, e dali a nada voltou com unha caixa de madeira que teria no máximo vinte centímetros de comprimento, outros tantos de largura, e aí uns dez de alto.  Um único lado era coberto de rede fina.

          Naquela enxovia, amontoados uns sobre os outros, a tremelicar, dando chilreios aflitos, os bicos desmesuradamente abertos na angústia do medo, da falta de espaço, talvez também de sede e fome, amontoavam-se cinco ou seis pequenos melros que o senhor Guedes tirara de um ninho.  Ele achava graça áquela afliçao dos pássaros, queria que eu olhasse.  Eu, agoniado, desviava os olhos.  Perguntei-lhe se nao seria melhor deixá-los voar, e el riu-se da tolice.

          Olhe que nao voavam.  E morriam logo.

           Contou-me despois que tinha a ideia de lhes fazer outra gaiola, pois aquela era pequena demais e eles cresciam depressa.  Mas por experiência doutros anos, ás vezes acontecia que, como quase se nao podiam mexer, os melros ficavam tolhidos.

          -Sabe entao o que lhes faço?

           Eu nao queria ouvi-lo, mas o senhor Guedes continuava a fitar-me, esperando a minha atençao.

              -Chamo o gato, atiro-lhe um de cada vez.  E como eles esvoaçam, ainda é mais engraçado do que com os ratos.  Quer ver?

            Abanei a cabeça, e numa inspiraçao de desespero, mas sem exagerar o gesto, levei as maos ao peito.

              O senhor Guedes quis saber se era do coraçao.  Respondi-lhe que sim, que de vez em quando sentia umas arritmias, mas felizmente o médico tinha dito que nao era grave.

             -Ah!  Os médicos!

               Levantei-me e caminhei para a porta com lentidoes de doente.  Os melros continuavam a chilrear apavorados.  Bondosamente, o senhor Guedes tomou.me o braço, recomendou cuidado com os degraus, sugeriu acompanhar-me até casa.

             Agradeci, disse-lhe que nao era preciso.  E como se a ideia me ocorresse de momento, perguntei-lhe que tamanho ia ter a nova gaiola para os melros. 

             -Os melros?  O tom de surpresa e o franzir dos lábios a mostrar que já os tinha esquecido.  -Sabe uma gaiola bem-feita dá um trabalhao.  E acho que nao vale a pena.  Estao alí há duas ou três semanas, com certeza nem aguentam.  Amanha ou depois atiro-os ao gato.

J. Rentes de carvalho