
Quási à esquina da rua onde moro – uma rua que é um magazine, um écran e uma estante – uma estante onde se alinham romances de amor e onde estao catalogadas tragédias da vida – um écran onde se projectam, buliçosas e ternas, circunspectas e sombrias, máscaras e silhuetas de mulheres – um magazine de muitas páginas ilustradas a côres -vive embrulhadinha na sua beleza morena, dum moreno de cigana, a rapariga que todos os dias me vende cigarros- os cigarros que eu fumo e queimo, como se a queimasse e a fumasse, a ela, com o fogo dos meus beijos, com os lábios que me tresandam a pecado… com a bôca que era capaz de a sorver num hausto longo -como quem aspira o fumo embriagante e perfumado dum Havana blend, num boudoir de Venus núas… -entre magnólias doiradas e crisântemos roixos… É linda… Tem a graça de um cigarro que se esvai em fumo, visto através da parêde fina dum vitral azul… -a graça dum farrapinho azul de fumo que se alonga num capricho bizarro de curva trémula, histérica, nervosa… -a graça subtil do penacho de fumo azul dos meus cigarros, quando componho versos… -ou, quando, numa baralhada de frases caleidoscópicas -frases de fumo de tôdas as côres… -confesso o meu amor às mulheres que nunca amei… Debruçadinha ao balcao, espreitando a rua (era à luz dos seus olhos -que irradia, como brasas, fulguraçóns sinistras - que eu queria acender os cigarros que ela me vende…) assim passa os dias, a fingir que nao oculta dentro do peito uma dor que a esmaga, a fingir que nao esmaga dentro do peito, uma dor que oculta… O Destino encarregou-se de lhe dar um nome de novela -um nome que eu daria a uma marca de cigarros… -de cigarros de mortalha vermelha, com um coraçao impresso: -Silvina… Tôda ela, é fumo… -um cigarro a arder -a que há três anos, maos de crime e de pecado, atearam fogo… -por uma noite de Agôsto, em que o luar lacrimejava pérolas e as estrêlas pareciam pontas de cigarros, atiradas a esmo para o cristal azul de um cinzeiro imenso: -o céu…. A história de Silvina, é um cigarro em brasa… Eu, contei-a, emquanto se extinguiu num arabesco extravagante, numa cabriola voluptuosa, o fumo do cigarro que comecei a fumar quando comecei a escrever a crónica… A sua história -é uma história feita de fumo… Ela… -uma mulher de cinza…

MAIA ALCOFORADO (JUNHO, 1929)