DOS SERES HUMANOS (ANTES DE SEREM CIDADAOS)
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Acabámos de ver que a filosofia de Hobbes se edifica sobre dous pilares básicos, estreitamente relacionados: toda a realidade reduz-se a matéria (materialismo radical) e todo o fenómeno resulta de uma concatenaçao de causas (mecanismo determinista). Dois pilares a que nao renuncia quando se confronta com as questoes humanas, o que o leva a considerar o homem como um mecanismo cujas acçoes sao explicáveis apelando a causas materiais. De facto, também concebe o ser humano como um autómato, cuja actuaçao se pode reduzir aos movimentos das suas partes: “O que é na verdade o coraçao senao uma mola? E os nervos, o que sao señao diversas fibras? E as articulaçoes, senao várias rodas que dao movimento ao corpo inteiro, tal como o Artífice o construiu?” (Leviata, introduçao). A antropologia de Hobbes entende-se melhor como reacçao ao dualismo de Descartes (nao crê que sejamos compostos por duas substâncias diferentes, corpo e alma, mas que somos exclusivamente matéria) e ás teses aristotélicas (Hobbes nao pensa que a nossa existência seja guiada por um “telos”, um fim ou propósito, mas que estamos imersos numa sucessao de causas necessárias; também nao considera que sejamos políticos por natureza, mas que a hostilidade rege as relaçoes sociais). Mais adiante veremos em pormenor todas estas questoes. O ser humano, como corpo em movimento na sua condiçao natural, é o tema principal do presente capítulo. Neste contexto, “natural” tem duas acepçoes. Por um lado, logicamente, refere-se áquilo que se encontra na natureza, neste caso á física e á biologia. Por outro, também significa o oposto ao artificial; assim, a vida num Estado contrapôe-se á vida natural. Através deste conceito de natureza, a fisiologia e a psicologia interligam-se com a ética e a questao do estado pré-político do ser humano. Daí também o “antes de serem cidadaos” do título deste capítulo, que, como veremos na penúltima parte, nao deve ser encarado num sentido cronológico. Neste capítulo, vamos também fazer uma aproximaçao a partir do direito, mais concretamente da constataçao inegável de que todos e cada um de nós resistimos a uma morte prematura, que Hobbes define como o direito natural de preservar a integridade física, isto é de a pessoa se proteger a sí própria. Neste sentido, só é possível a vida em sociedade se esse direito for regulado por um poder soberano que obrigue a respeitar certas normas de paz, que denomina leis naturais. Por outro lado, se a liberdade individual for ilimitada, a convivência converte-se numa anarquia dominada pelo caos e pela guerra. Esta distopia hobbesiana tem origem na igualdade de todos os seres humanos, dado que, na sua opiniao, todos partilhamos a mesma capacidade física e mental. O universo é composto exclusivamente por corpos em movimento e os homens nao sao excepçao. O nosso próprio corpo é um organismo material que nos determina. A nossa percepçao e o nosso pensamento também o sao. Além disso, somos todos movidos pelas mesmas paixoes, apetites e aversoes. Somos practicamente iguais. Contudo, embora os nossos organismos e os seus mecanismos psicológicos sejam os mesmos, o objecto do desejo de cada um varia de forma muito considerável. Somos atraídos pelo prazer e a dor repugna-nos, obviamente, mas aquilo que produz em nós uma e outra sao coisas completamente diferentes. Hobbes sublinha em especial esta ideia ao apresentar a sua imagem do homem. Mas antes de desenvolver a questao dos apetites, deveremos entender como somos capazes de descobrir as coisas que nos atraem ou repugnam. Devemos, portanto, orientar a nossa reflexao para a forma como percepcionamos o mundo exterior.
ignacio iturralde blanco
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