Ao contrário de Lula, o carisma de Roosevelt nasce da emergência e da instabilidade política. A sua liderança teve de enfrentar nao apenas um, mas dois momentos de crise intensa: a Grande Depressao e a Segunda Guerra Mundial. Ganhou nos dois – salvou a América do colapso económico e venceu a maior guerra de sempre. Roosevelt ganhou, mas nao com base na astúcia ou na virtude táctica. Pelo contrário, apostou sempre no desafio e na luta, enfrentando os seus adversários com energia e pouco procurando o compromisso ou o entendimento. É com ele que o Keynesianismo triunfa, que a esquerda americana constrói o seu programa reformista, e que o Estado social encontra o seu tempo. Por um momento, a América parece ultrapassar a Europa no desenvolvimento das políticas públicas e no papel do Estado na economia. Nunca na história da América tinham sido adoptadas reformas tao corajosas e radicais tendentes á reduçao dos privilégios e das desigualdades: investimento público, impostos progressivos, segurança social, negociaçao colectiva. O “new deal”, para os padroes políticos dos Estados Unidos, representou uma profunda e definitiva transformaçao democrática. Roosevelt foi dos primeiros políticos a perceber a importância dos meios de comunicaçao de massas. Criou as suas “conversas á lareira” (fireside chats), forma com a qual podia contactar directamente com cada um dos milhoes de americanos que esperavam do presidente um programa de acçao para vencer a depressao económica. Através dessas emissoes de rádio, o presidente explicava as suas políticas e as suas decisoes, recorrendo a uma linguagem simples e a metáforas convincentes. O êxito dessas conversas foi tao forte que se transformaram numa tradiçao política. Ainda hoje o presidente se dirige semanalmente aos Americanos através de uma emissao de rádio. Mas, naqueles dias, todo esse novo mundo da comunicaçao de massas foi mobilizado, dando novo vigor e uma nova potência á palavra e á acçao política. Arthur Miller, no delicioso ensaio que escreveu de comparaçao entre o político e o actor, dirá que “só conheci um único dirigente a que pudesse chamar com toda confiança “o Presidente dos Estados Unidos”, e esse alguém foi Franklin Roosevelt. Eu seria tentado a afirmar que ele nao era um actor, mas certamente porque ele o era excelentemente”. No entanto, como o próprio conta, o laço que o ligou para sempre ao presidente nada teve a ver com a imagem, mas com a acçao política. A criaçao do fundo de empréstimo aos proprietários fez aumentar para o dobro o período de pagamento e baixar para um quarto os pagamentos mensais, o que evitou o despejo de muitas famílias americanas, entre as quais a de Arthur Miller. Diz ele, recordando esse período: “Depois de eleito, e durante os seus primeiros cem dias, mudou de alto a baixo a Administraçao, suscitando novos serviços destinados a lutar contra o desemprego, o empobrecimento das classes médias, a fome real que se espalhava no país. O tempo da Lucidez sucedia ao da Negaçao”. A importância que normalmente se atribui á fabricaçao da imagem e, em consequência, do carisma pessoal deve ser relativizada. Afinal de contas, a acçao acaba por contar muito mais do que a ilusao. As novas técnicas de comunicaçao permitiram a Roosevelt sobre tudo criar um forte e dinâmico movimento social de mudança – o seu movimento carismático. Sempre fez questao de liderar pessoalmente a mudança, nunca delegou o que era sua responsabilidade, nunca se esquivou e, pelo contrário, sempre que teve oportunidade fez-lhe frente, encarando sem receio os ataques mais violentos. É verdade que a comunidade carismática, formada pelos milhoes de desempregados marginalizados socialmente, e que mantinham os seus anseios e aspiraçoes, há muito que existia. Mas nao tinha consciência de si nem da sua força. Foi preciso dar-lhe voz, juntá-la, dinamizá-la, para que existisse como realidade social. Essa força social foi a do homem comum americano. O povo mais humilde e mais abandonado pelas instituiçoes viu num filho do privilégio o seu defensor e o seu líder. Nada mau para o aristocrata de Hudson River. Também na guerra, a primeira grande decisao foi contrária ao sentimento dominante na América de vingança sobre os japoneses. Roosevelt decidiu o que parecia impossível impor aos Americanos depois de Pearl Harbor: “Germany first” – a guerra ganha-se primeiro na Europa, só depois no Pacífico. O que é hoje considerado como uma das mais lúcidas decisoes estratégicas enfrentou sérias reservas na cúpula militar e na opiniao pública americana, pelo que significou de prioridade na alocaçao de recursos – tropas, armas, navios, avioes – ao teatro de guerra europeu. O mesmo aconteceu com o controverso programa “lend-lease”, que permitiu fornecer armamento á Gra-Bretanha durante o período em que esta, isolada, lutou corajosamente e numa situaçao desesperada contra a ameaça nazi. Esta decisao de ajudar a Gra-Bretanha esteve longe de ser fácil, já que o consenso isolacionista americano era muito forte e o próprio Roosevelt tinha prometido ás famílias americanas, durante a sua campanha eleitoral, que os Estados Unidos nao se envolveriam nas loucuras das guerras europeias e que nenhum dos seus filhos seria arrastado para o campo de batalha. Mas se um método nao resulta, como el próprio dizia, adoptemos outro, porque o importante é continuar a tentar até ser bem-sucedido. Com rapidez, mudou o plano e dedicou-se a convencer os Americanos que era preciso fazer alguma coisa. Numa das suas intervençoes radiofónicas, punha as coisas desta forma: se a casa do meu vizinho está a arder, nao será melhor emprestar-lhe a mangueira antes de o fogo atingir também a minha casa? Os Americanos, ainda relutantes e desconfiados, admitiram. Essa decisao evitou a derrota da Gra-Bretanha. A história do século XX mostra-nos a evidente ligaçao de situaçoes de crise política e económica com o aparecimento de fenómenos carismáticos autoritários. Este costuma ser o momento dos apelos providencialistas e da demanda dos “escolhidos” para a salvaçao pública. Tal foi, sem dúvida, o caso das carreiras políticas de Hitler ou de Mussolini que marcaram todo o século XX. Mas a presidência de Roosevelt mostra também que nem sempre é assim, e que a saída da crise pode também ser fruto de um carisma baseado numa proposta progressista, inovadora e democrática. O seu triunfo fez-se, é certo, numa aliança forte entre o povo e o presidente, e muitas vezes em confronto com as intituiçoes jurídicas e com as forças económicas dominantes. Cometeu erros, sem dúvida, e talvez o pior tenha sido ignorar as garantias constitucionais quando obrigou milhares de americanos descendentes de japoneses a abandonarem as suas propriedades e bens, declarando a costa leste como teatro de guerra. O congresso só muitos anos depois reconhecerá o erro e o abuso. Mas nao há dúvida de que a sua presidência teve como resultado um aprofundamento democrático e um progresso social assinalável. Quando o supremo tribunal americano quis declarar inconstitucionais as medidas económicas do “new deal”, Roosevelt ameaçou com a modificaçao das regras de nomeaçao dos juizes. A ameaça, apesar de derrotada no congresso, acabou por ter o efeito pretendido, pois o tribunal decidiu aprovar as reformas. Ackerman chama a estes momentos – o “new deal” ou a posterior luta pelos direitos cívicos – “quase constituintes”, porque, embora a Constituiçao americana continuasse inalterada, eles mudaram para sempre a forma como esta é lida e interpretada. O legado de Roosevelt representou uma extraordinária mudança na cultura política americana. Roosevelt liderou na guerra como na reforma económica – com um inquebrantável e contagiante optimismo num futuro mais próspero e pacífico. No entanto, a sua vida política foi tudo menos fácil. Também ele, como sempre acontece com a autoridade carismática (como já referimos a propósito da vida política de Lula da Silva), foi continuamente chamado a prestar provas. Provas perante o sofrimento físico; provas nas mudanças políticas e sociais que empreendeu e que insistiu sempre em levar até ao fim; provas na conduçao da guerra. Foi o único presidente a ser eleito quatro vezes seguidas, mas os seus adversários nunca lhe deram tréguas e ele sempre os enfrentou com uma serena confiança que surpreendeu muitos dos seus contemporâneos. Na última campanha, já visivelmente enfraquecido, os seus opositores lançaram um venenoso ataque, acusando-o de ter mandado um barco de guerra buscar a sua cadela, esquecida em férias, á residência de Warm Springs. Em resposta, Roosevelt dirá que os republicanos já o tinham insultado antes, a ele e á sua família, mas que isso nunca o tinha afectado. No entanto, a sua cadela, Fala, essa estava muito ofendida e nada disposta a esquecer o assunto porque era… irlandesa. O espirituoso e superior discurso de resposta ficará para a história da boa retórica política americana. Mas talvez o facto mais extraordinário na sua vida política seja ter feito tudo isto paralisado da cintura para baixo e sem poder andar nos últimos vinte e três anos da sua vida. A América consagra-lhe, com justiça, um lugar de destaque entre os presidentes mais influentes da História do país: Washington, que o fundou, Lincoln, que o preservou, e Roosevelt, que o livrou da crise económica e venceu a guerra.
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josé sócrates
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