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Lula da Silva é um interessante exemplo carismático contemporâneo, por duas razoes. A primeira é que ele nao resulta de uma situaçao de crise; pelo contrário, desponta num quadro de normalidade institucional e de estabilidade política. A segunda é que se trata incontestávelmente de um carisma favorável ao aprofundamento democrático. Esse carisma tem uma longa história e uma dupla origem. O primeiro momento é o percurso singular de alguém que sofreu pessoalmente a exclusao e a pobreza e que lutou contra a ditadura militar e a favor dos direitos políticos e sociais, num período em que a tortura e o risco de vida exigiam mais do que a coragem política. Depois, num segundo momento, ele resulta do indiscutível êxito da sua governaçao na promoçao da igualdade económica e no que isso significa de efectivo avanço democrático E nao foi apenas o resultado, mas o método. Nem o discurso nem a linha política de Lula foram marcados por um qualquer ressentimento ou por um ajuste de contas social, mas fundada na superioridade da proposta de uma nova e mais elevada plataforma social de igualdade e de coesao que favorecesse todos – a economia nacional, a democracia nacional, o prestígio internacional do país. A divisao e o traumatismo social causados por décadas de gritantes e escandalosas desigualdades nunca encontraram um discurso de desforço por parte de uma esquerda finalmente vencedora, mas uma proposta de inclusao que pudesse ultrapasar esse passado com um projecto de reconciliaçao social com mais justiça, menos pobreza e mais oportunidades. O mérito de Lula foi convencer os brasileiros de que todos tinham a ganhar com isso. O resistente passou a reconciliador. O radical passou a fazer do compromisso um caminho bem-sucedido. O passado iníquo foi ultrapassado sem vingança social e sem ressentimento, em nome de um novo pacto social de maior igualdade. A sua liderança resultou um triunfo sobre todos os preconceitos – os da direita e os da esquerda. Numa divertida conversa com os seus camaradas, punha as coisas desta forma: “antes, no sindicalismo, dizíamos que a culpa era dos patroes; depois, na oposiçao, a culpa era do governo; finalmente, já no governo a culpa era… do governo americano. É talvez a altura de fazermos qualquer coisa”. E fez. O governo de Lula mostrou que a esquerda sul-americana está pronta a governar com responsabilidade, pondo de lado o discurso radical e extremista e fazendo as reformas necessárias para uma sociedade mais justa e, portanto, mais democrática. No mesmo momento em que tirava milhoes de pessoas da miséria, melhorava a economia nacional e colocava o Brasil num patamar que nunca antes tivera no domínio das relaçoes internacionais, jamais, como no seu tempo, o Brasil foi tao escutado, tao ouvido e tao influente. O sucesso na política externa e o reconhecimento internacional foram talvez o que mais custou a aceitar pelos seus adversários políticos. A organizaçao do Mundial de Futebol e dos jogos Olímpicos sao os símbolos desse período. Em 2010, sob a sua mediaçao, Lula da Silva obteve um acordo para pôr fim ao conflito entre a comunidade internacional e o Irao. Os Estados Unidos recusaram-no. No entanto, se compararmos as condiçoes desse acordo de princípio com o que foi recentemente assinado pelos dois países, podemos ver que a sua rejeiçao resultou de puro preconceito. Era talvez de mais para o sucesso do ex-sindicalista sem estudos, sem experiência internacional, sem saber línguas e que tinha apenas do seu lado o conhecimento do seu país e do seu povo, a sua inteligência, a sua intuiçao, a sua vontade e a sua convicçao. Joao Gilberto cantava “Brasil com S”. Nos útimos anos, esse “S” foi de Silva, Lula da Silva. Á liderança de Lula nao faltou sequer esse elemento que pertence ao coraçao do fenómeno carismático – a condiçao de ter de, a todo momento, prestar provas. Assim foi toda a vida: na liderança sindical e na eleiçao presidencial, que só conquistou na quarta tentativa. Nunca nada lhe foi oferecido sem luta. A sua distinçao foi sempre sujeita a exames periódicos de inteligência política e de combates exigentes. Em qualquer caso, a sua liderança baseou-se sempre no reconhecimento dos pares e teve sempre que provar no terreno da luta política para se facer aceitar. Nunca teve do seu lado nem a legitimidade do nascimento nem a proteçao de um qualquer “establishment”. Foi preciso fazer-se a si próprio e tantas vezes sozinho. Foi preciso construir tudo, e tudo do início como fez com o Partido dos Trabalhadores. E, agora, quase dez anos depois de sair da Presidência, volta a ter de prestar provas perante uma direita política que quer arrancar pela força o seu retrato da galeria dos presidentes. A falsa acusaçao de corrupçao transforma-se no novo “punhal de Brutus”; a manipulaçao política do aparelho judicial parece ser o substituto ideal dos militares. O esforço democrático de Lula para transformar o Brasil teve subitamente um retrocesso. O golpe constitucional do “impeachment” mostra o caminho que ainda falta percorrer na aceitaçao das regras inerentes ao “fair play” democrático. A direita política brasileira, em poucos meses, mostrou que é capaz de tudo, ou seja, que os limites da convivência e mútuo reconhecimento que a democracia impoe pouco contam. O velho leao tem mais esta prova pela frente. O último capítulo desta vida extraordinária nao está ainda escrito. Mas promete.
JOSÉ SÓCRATES
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