Arquivos diarios: 21/03/2017

O APARELHO BUROCRÁTICO

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               Pierre Rosanvallon refere-se á obra de Weber outorgando-lhe o mérito de reconhecer a administraçao e a burocracia estadual como condiçao da democracia nos modernos Estados de massas.  Isso é bem verdade, mas esconde a outra face da mesma moeda:  a profunda desconfiança de Weber em relaçao á burocracia enquanto ameaça ao poder efectivo da democracia e entrave á vontade popular de mudança.  Entendamo-nos.  Para Weber é evidente que, embora com alguns perigos autoritários, o fenómeno de racionalizaçao nos Estados modernos conduziu a uma extensao dos aparelhos burocráticos com objectivos bem meritórios do ponto de vista democrático.  Os aparelhos administrativos estaduais favoreceram a segurança, a igualdade jurídica e a previsibilidade nas relaçoes sociais.  Reduziram fortemente os aspectos arbitrários de governaçao.  Esse movimento foi desde logo imposto pelas condiçoes económicas do mercado capitalista, exigindo regras claras do direito capaces de assegurar a continuidade e a eficácia governativa.  De um ponto de vista liberal, isto deve ser creditado a seu favor.  Também a democracia deve alguma coisa á administraçao burocrática, já que esta resulta também do crescente movimento democrático de igualdade.  O horror ao privilégio e o alargamento da participaçao política apelam para a regularidade burocrática, impondo a impessoalidade e abstraçao no exercício dos poderes do Estado:  “…todo o nivelamento social…   favorece a burocratizaçao que é, por todo o lado, a sombra da “democracia de massas” em progresso”.  Todavia, a preocupaçao mais moderna de Weber (digamos assim) é, sem dúvida, o poder excessivo dos aparelhos burocráticos quando únicos actores em cena.  O monopólio do poder pelos especialistas ou funcionários é, aos seus olhos, o principal perigo que ameaça a liberdade e a escolha popular nas sociedades comtemporâneas.  Se a democracia directa contém em si uma instabilidade intrínseca essencial, nao é menos verdade que uma democrácia entregue ao poder burocrático, apesar de impedir a anarquia, pode também conduzir á parálise e a uma profunda desconsideraçao e afastamento das aspiraçoes populares.  A principal característica deste poder burocrático resulta de ser impessoal e anónimo, impedindo a responsabilidade política.  Assim o vê também Hannah Arendt:  “O poder burocrático, o poder anónimo do burocrata, nao é menos despótico por “ninguém” o exercer.  Pelo contrário, é ainda mais temível, porque ninguém pode falar com esse “ninguém” ou pedir-lhe seja o que for”.  É um poder vazio e sem rostro, um reino da apatia e da inaçao que olha com horror, a iniciativa e a inovaçao, e cuja inclinaçao mais forte é, no geral, nada decidir.  Poder, finalmente, que assenta na força do conjunto e na lealdade dos seus membros ao colectivo.  Bourdieu, mais uma vez, decreve-o de forma certeira:  “A lei  fundamental dos aparelhos burocráticos quer que o aparelho dê tudo (e nomeadamente o poder  sobre o aparelho)  aos que lhe dao tudo e que dele esperan tudo porque nao têm nada ou nao sao nada fora dele; em termos mais brutais, o aparelho importa-se mais com aqueles que mais se importan com ele porque sao esses que lhe importan mais”.  Entregues a si próprios, eles constituem o reino dos personagens da “honesta mediania” cuja promoçao e previlégio dependem da sua fidelidade á norma e á hierarquia, protegendo assim o conjunto da ameaça dos espíritos criativos e, em consequência, potencialmente rebeldes.  A intervençao de Weber, quer no plano científico, quer no plano da estricta intervençao política, foi sempre a de procurar um equilibrio nas duas dimensoes necessárias da vida democrática:  a rotina burocrática e a vontade política.  A personalizaçao carismática nasce como consequência do dever democrático de assumir responsabilidades políticas pelas escolhas feitas, evitando a governaçao burocrática e sem rostro – a democracia acéfala.  Se a burocracia é uma necessidade imperiosa das sociedades industriais complexas que devem ser reguladas pelo direito e pelo mercado, nao deixa de ser verdadeiro o perigo da dominaçao burocrática como entrave a qualquer inovaçao ou mudança, desapossando o poder político da sua capacidade de acçao em proveito de uma tecnocracia que, entregue a si própria e ás suas “lógicas intrínsecas”, visa apenas a sua própria perpectuaçao como máquina.    …Como, entao, substituir a conduçao do Estado pelos funcionários por políticos capazes de tomar decisoes e assumir responsabilidades?  A formulaçao destas questoes deixa claro a sua preocupaçao política dominante:  a mediocridade do pessoal político selecionado com base em critérios administrativos e a ausência de responsabilizaçao política perante o povo.  Mais uma vez, o seu maior receio está no domínio frio, inerte e impessoal da burocrácia, resultado último da eliminaçao de qualquer mudança, de qualquer inovaçao ou de qualquer dimensao emotiva nas escolhas políticas.

JOSÉ SÓCRATES