Depois vem a história. Se quisermos encontrar nesta disciplina um epígono de Hegel, ninguém melhor, ressalvadas as devidas diferenças que assinalaremos, do que Thomas Carlyle. Em maio de 1840, proferiu uma série de conferências a que chamou On heroes, hero-worship, and the heroic in history. A ela assistiu a mais sofisticada e aristocrática classe londrina da época: “escutaram algo novo e pareciam muito surpreendidos e agradados. Riram-se e aplaudiram”. Nada fazia prever – e certamente nao parece ter sido essa a intençao do autor – que as suas ideias contivessem uma nova doutrina política e muito menos que viessem a constituir fonte de inspiraçao para as desgraças que nos aguardavam no século seguinte. Mas assim foi. A carga explosiva das suas palavras e pontos de vista rebentaria mais tarde – e ouvir-se-ia longe. A ideia central de Carlyle é a marcha da história sempre se fez com o contributo de heróis, sem os quais nao teria havido progresso nem desenvolvimento. A história é uma galeria de arte cuja coleçao de biografias de personagens excepcionais ilumina a paisagem histórica, dando-lhe um sentido e um rumo: “a História Universal, a História do que o homem realizou nesta terra nao é no fundo outra coisa que a História do que fizeram os grandes Homens aqui em baixo”. Quando se olha para o panorama vasto do tempo histórico, o que fica é a marca desses heróis. Sem eles nao existiria História, só inércia e marasmo: “Um homem nao pode dar prova mais tristemente luminosa da sua pequenez do que a sua recusa de acreditar nos grandes homens.. A História do mundo, já o disse, pode perfeitamente resumir-se á biografia dos grandes homens.” Desta historiografia, o ponto mais importante é, sem dúvida, a quase divinizaçao do personagem heroico. Uma veneraçao arrebatada e sem limites: “Do meu ponto de vista, os grandes homens sao e foram sempre admiráveis; e eu iria ao ponto de afirmar que, no fundo, fora deles nada é verdadeiramente admirável. Toda a dignidade de linhagem, que é sobre o que repousa a sociedade dos homens, pode ser definida como uma “hero-archy; dito de outra forma, um governo de heróis. Toda a estructura social representa… uma veneraçao hierarquizada do herói, a reverência e a obediência devida aos homens verdadeiramente grandes e verdadeiramente sábios”. O êxtase retórico do discurso parece conduzi-lo a substituir a legitimidade divina pela legitimidade da superioridade espiritual sem a qual “nenhuma chama teria brilhado na noite”. Carlyle procede a uma verdadeira transmutaçao teológica: ao culto de Deus sucede o culto do herói – um santo laico. O perfil político do herói tinha nascido e iria durar. A idealizaçao que Carlyle faz do herói histórico, tem alguns traços singulares. Primeiro, o herói nao precisa de ser homem de Estado – pode ser religioso, filósofo, literato. Todos eles no seu processo de criaçao deixaram a sua marca no tempo; sem eles a conduzirem o Estado e a moldarem o progresso espiritual dos povos nada existiria na história a nao ser aridez ou quietude ou, pior ainda, a anarquia, a mais odiosa de todas as coisas. Depois. em segundo lugar a identificaçao do herói nao é feita por deduçao lógica, mas por intuiçao. Nao definimos os heróis, limitamo-nos a reconhecê-los quando aparecem. O génio que é variado e multifacetado, nao encaixa em conceitos; ele surge como revelaçao. Por outro lado, e apesar do seu romantismo, Carlyle coloca uma grande insistência na obra e na realizaçao como identificaçao do herói. A contemplaçao nada cria, a virtude está na acçao. É a obra que distingue o herói – afinal, é o que fica. Finalmente, ponto importante, a sua visao do herói, político ou artístico, nao está desligada de uma moralidade que é inerente á condiçao de “Grande Homem”, aqui residindo, a meu ver, o principal afastamento do pensamento de Hegel. Á condiçao do herói nao basta o feito, mas o pensamento. Nao é suficiente a vontade, mas a inteligência. É uma visao de nobreza aristocrática – elevaçao de espírito e responsabilidade na acçao. Ao contrário dos que mais tarde viriam a afastar a responsabilidade na acçao da ética individual, o perfil do herói de Carlyle é, sem dúvida, o de um homem singular e grande, nao pelo que conseguiu fazer, mas pelo mérito intrínseco do que fez. Nao é o simples sucesso que faz o herói – é a boa razao que lhe assiste. A impressao que fica é a de que Carlyle era um producto da sua época, da “gentlemanly order” que criou a elite dirigente do Império e que a educou na compreensao do comando enquanto condiçao de privilégio, mas também de responsabilidade. “Um padre do imperialismo britânico”, dirao alguns que nao lhe apreciavam o arrebatamento na linguagem. A verdade é que se desprende dos seus textos uma grande exigência com a liderança – nobreza de espírito, inteligência e determinaçao na acçao – , mas sempre acompanhada de uma infindável desconsideraçao pelos de baixo. “Nao se necessita somente um herói, mas de um mundo que lhe corresponda, que nao seja um mundo de criados… um mundo de criados tem necessariamente que ser governado pela imitaçao do herói, pelos reis que nada têm de real senao os enfeites. Um tal mundo pertence-lhes tal como eles pertencem a esse mundo.” No entanto, a sua eloquência e fértil imaginaçao produziram uma impressionante visao idealizada do herói como personagem a quem devemos veneraçao e obediência: “Adoraçao do herói, cordial e reverente admiraçao, submissao, ardor ilimitado pela mais nobre e quase divina forma do homem. Nao é este o próprio gérmen do cristianismo?” Nao admira, portanto, que este culto do herói, como âncora histórica, como única referência segura, como “perdurável esperança para a conduçao do mundo”, viesse a ser a fonte de inspiraçao para o que viria a seguir: Quase um século depois, estas ideias iriam combater ao lado dos movimentos políticos mais extremistas e destruidores que o mundo conheceu na “marcha para o fascismo”. O perfil autocrático do carisma do herói político estabelecia-se e consolidava-se.
josé sócrates
