O GRANDE HOMEM
Mas há uma história mais antiga que precede este ambiente geral de preocupaçao com a ordem e a autoridade. Essa é a história intelectual do “grande homem”, forjada por vários dos mais importantes filósofos e historiadores do século XIX. Bem vistas as coisas, este credo mítico do papel do “grande homem” e da historiografia do herói prepararam o caminho da liderança carismática. Durante um longo período, a narrativa histórica permaneceu ligada á literatura apologética dos grandes feitos e dos grandes homens e ao efeito desta crença na imaginaçao humana. Um mito que vem de longe: a prosa épica da antiguidade grega concebeu e consagrou a história como operaçao destinada a impedir o esquecimento das grandes realizaçoes e a garantir a fama dos que nelas se distinguiram. Ao serviço da glória pessoal e nacional, a crónica histórica foi, depois, instrumento de narrativa do comando real, das façanhas do “grande homem” aristocrático, cuja superioridade se fundava no sangue, no nascimento e no feito militar. Quase sempre, foi a história das dinastias, das guerras, das batalhas – forma perfeita de assegurar um fervor nacional e élitista. Mas a Revoluçao Francesa trouxe uma outra genealogia do grande personagem. O elogio pessoal era agora devido, nao ás qualidades baseadas na posiçao social, mas á virtude individual: “aux grands hommes la patrie reconnaissante”. A República descobre o seu novo “grande homem”, desligando-o da monarquia e do nascimento e afastando-o também do perfil ideal do herói guerreiro. Ele, o republicano, já nao é o herdeiro, mas ele próprio – e essa é a única condiçao que conta: o seu mérito pessoal, que se forma ao longo da vida e se exprime em vários domínios no Estado, nas letras, nas ciências. Do falso mérito daqueles “que se deram ao trabalho de nascer”, o carisma republicano dos grandes homens estende-se e democratiza-se. Mudança de paradigma, sem dúvida. No entanto, quer o “Ancien Régime” quer a República conservam um traço comum: o carisma do “grande homem” político vai continuar preso ás referências autoritárias, o que condicionará por muito tempo a visao e o papel do comando e da liderança política, dando-lhe um pendor despótico de que demoraria a libertar-se. Com efeito, talvez nada tenha sido tao decisivo para a futura interpretaçao conceptual da autoridade carismática que ainda havia de nascer.
josé sócrates
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