Á PROCURA DO CHEFE
.
Enquadremos primeiro; o aparecimento do carisma na teoria política, no inicio do século xx, nao aconteceu por acaso ou surgiu do nada. Pelo contrário, a sua passagem da teologia para a política é consequência de circunstâncias históricas e sociais muito particulares e emerge no contexto de uma intensa discussao sobre a questao da autoridade política e, em particular, sobre a questao da liderança. Atrás dele, há um longo percurso na história intelectual que lhe abriu o caminho, que o explica e que, para o entender, é preciso conhecer. O século XIX terminou com a consciência de que a legitimidade da velha ordem aristocrática morreu – o sangue e a linhagem como fundamento de obediência já nao é suficiente. O novo século começa com a sensaçao de que algo novo e de grande está a nascer – as massas vêm ocupar o cenário histórico, abrindo caminho como ator social. Do primeiro caso já há muito se tinha consciência; é o segundo que surpreende e assusta a Europa. Escrevendo em 1927, Ortega y Gasset dá conta do que ele chama o novo fenómeno do “cheio”; “as cidades estao cheias de gente, as casas cheias de inquilinos, os hotéis cheios de hóspedes, os comboios cheios de passageiros…” E por aí fora. Descreve a época como a da rebeliao das massas, preocupando-se, principalmente, com o modo como estas querem e conseguem impor “as suas aspiraçoes e os seus gostos”. Impossivél nao notar a nostalgia aristocrática que se desprende do texto, mas o livro descreve com talento a erudiçao o “estilo” do fenómeno – a ascensao das massas, assim é, as primeiras décadas do século XX trazem consigo este novo paradigma social – tudo cheio e tudo em grande. Tudo em massa: indústria de massas, consumo de massas, partidos de massas e, finalmente, também a guerra passou a ser de massas. O medo nao resultou apenas da falta da velha ordem aristocrática, por um lado, ou da massificaçao social por outro. Verdadeiramente, o novo problema social é o da coexistência dos dois fenómenos em simultâneo. Á emergência das massas como acontecimento social novo, junta-se o declínio e soçobro da velha ordem aristocrática. Massas sem ordem. Com as multidoes agora no palco da história, começa a ouvir-se um barulho de fundo que vai crescendo e se torna dominante; “mais autoridade”. Em todos os campos intelectuais, seja na filosofia, na sociologia, na emergente psicologia, na literatura em geral, bem como, por maioria de razao, na retórica política, a reclamaçao de ordem e da necessidade de autoridade vem de todo o lado e vem em uníssono. Mais propriamente, o que se reclama nao é tanto mais autoridade, mas uma “nova” autoridade capaz de substituir a antiga, perdida com o desaparecimento da tradiçao aristocrática e o direito a comandar pelo nascimento. É certo que as questoes da autoridade política – e, mais propriamente, a resposta á questao de “quem deve governar” – sao tao antigas como a filosofia. No entanto, o ambiente intelectual da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX é muito particular, trazendo para a primeira linha da reflexao um debate fixado na questao da autoridade, que nao só se estende a todas as áreas do saber, mas – e isso é que é verdadeiramente extraordináro – se estende a todos os países de cultura occidental. Todos procuram o chefe – quem deve sê-lo, como identificá-lo, como deve comportar-se, como educar para sê-lo. Este é o espírito do tempo: “le besoin d’un chefe”. A sociologia política de Weber, que traz o carisma para o palco das ideias políticas, é fruto deste ambiente intelectual. Também Weber andava á procura do chefe.
JOSÉ SÓCRATES
Esta entrada foi publicada en
Uncategorized.
Ligazón permanente.