Arquivos diarios: 28/11/2016

O DESENCANTAMENTO EUROPEU

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          É bem verdade que a política exige “uma especial habilidade para conviver com a deceçao”.   Para quem viu no projeto europeu o ideal político central da sua geraçao, estes sao tempos de grande desapontamento ou, para utilizarmos uma palavra de Weber, de desencantamento europeu, e nao porque a razao tenha vencido, mas justamente por se dar por vencida.   Valores democráticos?   Difícil de levar a sério.   Por toda a Europa, depois da crise de 2008, começou a ser mais nítido o que já há muito era denunciado como defícit democrático.   Essa tendência acelerou-se.   O poder político europeu aparece-nos como detido por um aparelho burocrático sem rosto e sem responsabilidade.   O receio de Weber das democracias acéfalas, encontra hoje no projeto europeu uma concretizaçao que era difícil  de imaginar.   Muitos nos diziam que o problema da democracia europeia residia no facto de nao haver povo europeu.   Sim, como construir uma democracia sem povo?   Claro, sempre pensámos que esse povo europeu seria o resultado dos avanços instítucionais.   E, que avanços – bandeira, hino, fronteiras, moeda.   Tudo parecia ir no bom sentido.   Nao era certo que o tempo nos daria essa identidade?   Afinal, todas as naçoes resultaram do esforço dos Estados na construçao de uma língua comum, de uma história comum, de uma educaçao comum.   Com o tempo, passo a passo, nao acabariamos todos europeus – nós, Europeus?   A crise dos refugiados faz voltar as fronteiras; a França, em guerra contra o terror, tenta facer regressar o banimento e a expropriaçao da cidadania ao código penal; a Dinamarca acha apropriado o confisco dos bens aos refugiados que o direito internacional impôe acolher.   Como explicar, entao, a Europa dos valores?   Como afirmar a Europa humanista, a Europa dos direitos humanos?   Vimos o senhor Cameron apelar aos renitentes ingleses, expondo as razoes para ficarem na Europa.   O que lhes disse nao foi que a Europa é boa, mas que, acedendo, só ficariam com a parte boa, uma parte pequenina.   Acontece que os ingleses nao gostam de ser governados por funcionários e muito menos quando suspeitan que por detrás deles estao alemaes.   Preferiram o “gran large”.   Mas voltemos á economia.   Começando por tentar esclarecer que nao sao os princípios do liberalismo clássico que hoje dominam, mas os do neoliberalismo, uma nova e radical utopia.   Nunca como hoje foi tan importante identificar e sublinhar as diferenças entre um e outro, sob pena de andarmos ás escuras no debate.   A palavra de ordem já nao é o clássico “laissez-faire”, que restringia o espaço público, fixando os límites do Estado e deixando um espaço livre para o mercado.   Já nao é a racionalidade económica privada de um lado, e a racionalidade política, o interesse público, do outro.   Pelo contrário, agora trata-se de “diffuser le marché partout”.   A ambiçao é de erigir em lei – quase diriamos em única lei – a lei do mercado.   Já nao deve ser o Estado, mas o mercado a agir como regulador geral.   Sao já os mercados que decidem quem é e quem nao é.político responsável.   Sao eles, e nao o povo, que avaliam e que dao notas aos políticos.   A xulgar pelos recentes resgates bancários a funçao do Estado parece agora nao ser regular o mercado, mas servir o mercado.   Nao se trata apenas de impor o mercado, trata-se de tudo explicar com o mercado.   Nesta nova utopia, a economia há muito que deixou de ser a ciência ocupada com um objeto determinado – a concorrência, a fixaçao de preços, o investimento, o lucro – para se transformar na ciência que pretende explicar todo o comportamento humano.   Ela já nao pretende apenas esclarecer a produçao, a eficiência, o crescimento – ela é a ciência das “escolhas racionais”, quer dizer, só a economia é racional.   A vitória da Razao, afinal era isto: a ciência económica como ciência total, para nao dizer totalitária.   Desde que Gary Becker publicou o seu livro “The economic approach of human behavior” (1976) que as mais simples decisoes, como ter filhos ou nao, casar ou nao, drogar-se ou nao, passaram a ser vistas como sendo do âmbito da nova ciência económica, já que, afinal, dependem apenas de um cálculo custo-benefício, mais ou menos intuitivo, que o novo “homem económico” faz a todo o instante.   A partir de agora, a clássica questao sobre “o que é a boa açao?”, que desde sempre pertenceu á filosofia moral, passa a ter resposta no cálculo económico, aquela que for mais vantajosa para mim.   Á mao invisivel sucede o cálculo pessoal invisivel.   Recentemente, uma revista semanal, num louvável esforço para melhorar a imagem de um sisudo ministro das Finanças, resolveu contar um jovial episódio: este, num dia menos atarefado, propôs aos seus colaboradores passar o intervalo de almoço a aplicar algumas equaçoes econométricas ás máximas kantianas.   O que a revista nao sabia é que a história era para levar a sério.   De facto, para que precisamos de Kant quando temos toda a ciência económica para resolver os dilemas morais e explicar o comportamento humano?   Nas últimas décadas, pudemos ver como a linguagem económica invadiu áreas da vida coletiva, mesmo aquelas que considerávamos mais nobres e preservadas das consideraçoes egoísticas ou do interesse próprio.   Nos anos oitenta, começámos a ouvir falar em mercado eleitoral, em consumidor eleitoral, em produto eleitoral.   Sandel, no excelente ensaio “O Que o Dinheiro Nao Pode Comprar”, dá-nos conta desse avassalador movimento em que a lógica do mercado invadiu áreas sociais anteriormente tao afastadas do interesse económico que nos causa a estranha sensaçao de que tudo está á venda.   A lista dessas novas áreas de mercado é perturbadora.   Ela inclui a possibilidade de matar um rinoceronte negro em vias de extinçao na África do Sul; o direito a comprar o seguro de vida de uma pessoa viva, usufruindo do futuro reembolso por morte, tanto maior quanto mais cedo ela ocorrer (breve: apostar na morte); pagar a mulheres toxicodependentes para que se sujeitem á esterilizaçao com o objetivo de evitar bebés viciados ou vítimas de maus-tratos; o direito a poluir, cobrando-se 13 euros por tonelada métrica de C O2 emitido para a atmosfera, só para incluir também um exemplo de inspiraçao europeia.   E tudo isto, claro está, feito em nome das melhores causas, usando os mágicos e infalíveis “instrumentos de mercado”.   Um dos paradigmas deste novo tempo é o que se passa com o acesso do público ás comissoes do congresso norte-americano.   O método é – ou era – o clássico e democrático lugar na fila.   Entra quem estiver no lugar da frente da fila até a lotaçao estar esgotada.   Acontece que, nalgumas sessoes concorridas, lobistas diligentes tinham que passar várias horas na fila por forma a manifestarem aos congressistas o interesse pela sua atuaçao.   Eis  a oportunidade que o mercado esperava.   Empresas profissionais decidiram contratar pessoas sem abrigo para guardar lugar na fila e vendê-lo depois aos referidos lobistas, que, desta forma, evitam perder o seu precioso tempo.   Todos ganham, dizem – o sem-abrigo que passa a ter uma ocupaçao digna, a empressa que tem o seu lucro legítimo, o lobista sem horas mortas de espera, e até o congresso ganha, já que quem assiste é quem verdadeiramente tem interesse na sessao.   Assim parece, mas só parece.   Na realidade, alguém perde. E a perda maior, diz Sandel, é que assistir a uma sessao do congresso deixa de ter o valor democrático e simbólico que tinha.   A introduçao do valor mercantil corrompe o bem e degrada-o – já nao é a mesma coisa assistir a uma sessao do congresso.   O episódio devia convidar-nos a refletir: é isto que queremos?   Nao deveríamos trocar umas ideias sobre o assunto antes de avançarmos por este caminho?   Recentemente em Portugal, decidimos também começar a vender a estrangeiros o direito de aqui residir em troca de investimento, admitindo, pela primeira vez, em áreas de soberania estatal, um tratamento distinto – um para ricos, outro para as pessoas sem posses.   A pergunta faz todo o sentido: o bem que vendemos será igual ao que era?   Depois do dinheiro, o simbolismo do direito que, como País, concedemos para aqui viver, e que antes estava baseado em regras iguais para todos, será ainda o mesmo?   Duvido.  

JOSÉ SÓCRATES