
É bem verdade que a política exige “uma especial habilidade para conviver com a deceçao”. Para quem viu no projeto europeu o ideal político central da sua geraçao, estes sao tempos de grande desapontamento ou, para utilizarmos uma palavra de Weber, de desencantamento europeu, e nao porque a razao tenha vencido, mas justamente por se dar por vencida. Valores democráticos? Difícil de levar a sério. Por toda a Europa, depois da crise de 2008, começou a ser mais nítido o que já há muito era denunciado como defícit democrático. Essa tendência acelerou-se. O poder político europeu aparece-nos como detido por um aparelho burocrático sem rosto e sem responsabilidade. O receio de Weber das democracias acéfalas, encontra hoje no projeto europeu uma concretizaçao que era difícil de imaginar. Muitos nos diziam que o problema da democracia europeia residia no facto de nao haver povo europeu. Sim, como construir uma democracia sem povo? Claro, sempre pensámos que esse povo europeu seria o resultado dos avanços instítucionais. E, que avanços – bandeira, hino, fronteiras, moeda. Tudo parecia ir no bom sentido. Nao era certo que o tempo nos daria essa identidade? Afinal, todas as naçoes resultaram do esforço dos Estados na construçao de uma língua comum, de uma história comum, de uma educaçao comum. Com o tempo, passo a passo, nao acabariamos todos europeus – nós, Europeus? A crise dos refugiados faz voltar as fronteiras; a França, em guerra contra o terror, tenta facer regressar o banimento e a expropriaçao da cidadania ao código penal; a Dinamarca acha apropriado o confisco dos bens aos refugiados que o direito internacional impôe acolher. Como explicar, entao, a Europa dos valores? Como afirmar a Europa humanista, a Europa dos direitos humanos? Vimos o senhor Cameron apelar aos renitentes ingleses, expondo as razoes para ficarem na Europa. O que lhes disse nao foi que a Europa é boa, mas que, acedendo, só ficariam com a parte boa, uma parte pequenina. Acontece que os ingleses nao gostam de ser governados por funcionários e muito menos quando suspeitan que por detrás deles estao alemaes. Preferiram o “gran large”. Mas voltemos á economia. Começando por tentar esclarecer que nao sao os princípios do liberalismo clássico que hoje dominam, mas os do neoliberalismo, uma nova e radical utopia. Nunca como hoje foi tan importante identificar e sublinhar as diferenças entre um e outro, sob pena de andarmos ás escuras no debate. A palavra de ordem já nao é o clássico “laissez-faire”, que restringia o espaço público, fixando os límites do Estado e deixando um espaço livre para o mercado. Já nao é a racionalidade económica privada de um lado, e a racionalidade política, o interesse público, do outro. Pelo contrário, agora trata-se de “diffuser le marché partout”. A ambiçao é de erigir em lei – quase diriamos em única lei – a lei do mercado. Já nao deve ser o Estado, mas o mercado a agir como regulador geral. Sao já os mercados que decidem quem é e quem nao é.político responsável. Sao eles, e nao o povo, que avaliam e que dao notas aos políticos. A xulgar pelos recentes resgates bancários a funçao do Estado parece agora nao ser regular o mercado, mas servir o mercado. Nao se trata apenas de impor o mercado, trata-se de tudo explicar com o mercado. Nesta nova utopia, a economia há muito que deixou de ser a ciência ocupada com um objeto determinado – a concorrência, a fixaçao de preços, o investimento, o lucro – para se transformar na ciência que pretende explicar todo o comportamento humano. Ela já nao pretende apenas esclarecer a produçao, a eficiência, o crescimento – ela é a ciência das “escolhas racionais”, quer dizer, só a economia é racional. A vitória da Razao, afinal era isto: a ciência económica como ciência total, para nao dizer totalitária. Desde que Gary Becker publicou o seu livro “The economic approach of human behavior” (1976) que as mais simples decisoes, como ter filhos ou nao, casar ou nao, drogar-se ou nao, passaram a ser vistas como sendo do âmbito da nova ciência económica, já que, afinal, dependem apenas de um cálculo custo-benefício, mais ou menos intuitivo, que o novo “homem económico” faz a todo o instante. A partir de agora, a clássica questao sobre “o que é a boa açao?”, que desde sempre pertenceu á filosofia moral, passa a ter resposta no cálculo económico, aquela que for mais vantajosa para mim. Á mao invisivel sucede o cálculo pessoal invisivel. Recentemente, uma revista semanal, num louvável esforço para melhorar a imagem de um sisudo ministro das Finanças, resolveu contar um jovial episódio: este, num dia menos atarefado, propôs aos seus colaboradores passar o intervalo de almoço a aplicar algumas equaçoes econométricas ás máximas kantianas. O que a revista nao sabia é que a história era para levar a sério. De facto, para que precisamos de Kant quando temos toda a ciência económica para resolver os dilemas morais e explicar o comportamento humano? Nas últimas décadas, pudemos ver como a linguagem económica invadiu áreas da vida coletiva, mesmo aquelas que considerávamos mais nobres e preservadas das consideraçoes egoísticas ou do interesse próprio. Nos anos oitenta, começámos a ouvir falar em mercado eleitoral, em consumidor eleitoral, em produto eleitoral. Sandel, no excelente ensaio “O Que o Dinheiro Nao Pode Comprar”, dá-nos conta desse avassalador movimento em que a lógica do mercado invadiu áreas sociais anteriormente tao afastadas do interesse económico que nos causa a estranha sensaçao de que tudo está á venda. A lista dessas novas áreas de mercado é perturbadora. Ela inclui a possibilidade de matar um rinoceronte negro em vias de extinçao na África do Sul; o direito a comprar o seguro de vida de uma pessoa viva, usufruindo do futuro reembolso por morte, tanto maior quanto mais cedo ela ocorrer (breve: apostar na morte); pagar a mulheres toxicodependentes para que se sujeitem á esterilizaçao com o objetivo de evitar bebés viciados ou vítimas de maus-tratos; o direito a poluir, cobrando-se 13 euros por tonelada métrica de C O2 emitido para a atmosfera, só para incluir também um exemplo de inspiraçao europeia. E tudo isto, claro está, feito em nome das melhores causas, usando os mágicos e infalíveis “instrumentos de mercado”. Um dos paradigmas deste novo tempo é o que se passa com o acesso do público ás comissoes do congresso norte-americano. O método é – ou era – o clássico e democrático lugar na fila. Entra quem estiver no lugar da frente da fila até a lotaçao estar esgotada. Acontece que, nalgumas sessoes concorridas, lobistas diligentes tinham que passar várias horas na fila por forma a manifestarem aos congressistas o interesse pela sua atuaçao. Eis a oportunidade que o mercado esperava. Empresas profissionais decidiram contratar pessoas sem abrigo para guardar lugar na fila e vendê-lo depois aos referidos lobistas, que, desta forma, evitam perder o seu precioso tempo. Todos ganham, dizem – o sem-abrigo que passa a ter uma ocupaçao digna, a empressa que tem o seu lucro legítimo, o lobista sem horas mortas de espera, e até o congresso ganha, já que quem assiste é quem verdadeiramente tem interesse na sessao. Assim parece, mas só parece. Na realidade, alguém perde. E a perda maior, diz Sandel, é que assistir a uma sessao do congresso deixa de ter o valor democrático e simbólico que tinha. A introduçao do valor mercantil corrompe o bem e degrada-o – já nao é a mesma coisa assistir a uma sessao do congresso. O episódio devia convidar-nos a refletir: é isto que queremos? Nao deveríamos trocar umas ideias sobre o assunto antes de avançarmos por este caminho? Recentemente em Portugal, decidimos também começar a vender a estrangeiros o direito de aqui residir em troca de investimento, admitindo, pela primeira vez, em áreas de soberania estatal, um tratamento distinto – um para ricos, outro para as pessoas sem posses. A pergunta faz todo o sentido: o bem que vendemos será igual ao que era? Depois do dinheiro, o simbolismo do direito que, como País, concedemos para aqui viver, e que antes estava baseado em regras iguais para todos, será ainda o mesmo? Duvido.
JOSÉ SÓCRATES
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