Arquivos mensuais: Novembro 2016

O DESENCANTAMENTO EUROPEU

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          É bem verdade que a política exige “uma especial habilidade para conviver com a deceçao”.   Para quem viu no projeto europeu o ideal político central da sua geraçao, estes sao tempos de grande desapontamento ou, para utilizarmos uma palavra de Weber, de desencantamento europeu, e nao porque a razao tenha vencido, mas justamente por se dar por vencida.   Valores democráticos?   Difícil de levar a sério.   Por toda a Europa, depois da crise de 2008, começou a ser mais nítido o que já há muito era denunciado como defícit democrático.   Essa tendência acelerou-se.   O poder político europeu aparece-nos como detido por um aparelho burocrático sem rosto e sem responsabilidade.   O receio de Weber das democracias acéfalas, encontra hoje no projeto europeu uma concretizaçao que era difícil  de imaginar.   Muitos nos diziam que o problema da democracia europeia residia no facto de nao haver povo europeu.   Sim, como construir uma democracia sem povo?   Claro, sempre pensámos que esse povo europeu seria o resultado dos avanços instítucionais.   E, que avanços – bandeira, hino, fronteiras, moeda.   Tudo parecia ir no bom sentido.   Nao era certo que o tempo nos daria essa identidade?   Afinal, todas as naçoes resultaram do esforço dos Estados na construçao de uma língua comum, de uma história comum, de uma educaçao comum.   Com o tempo, passo a passo, nao acabariamos todos europeus – nós, Europeus?   A crise dos refugiados faz voltar as fronteiras; a França, em guerra contra o terror, tenta facer regressar o banimento e a expropriaçao da cidadania ao código penal; a Dinamarca acha apropriado o confisco dos bens aos refugiados que o direito internacional impôe acolher.   Como explicar, entao, a Europa dos valores?   Como afirmar a Europa humanista, a Europa dos direitos humanos?   Vimos o senhor Cameron apelar aos renitentes ingleses, expondo as razoes para ficarem na Europa.   O que lhes disse nao foi que a Europa é boa, mas que, acedendo, só ficariam com a parte boa, uma parte pequenina.   Acontece que os ingleses nao gostam de ser governados por funcionários e muito menos quando suspeitan que por detrás deles estao alemaes.   Preferiram o “gran large”.   Mas voltemos á economia.   Começando por tentar esclarecer que nao sao os princípios do liberalismo clássico que hoje dominam, mas os do neoliberalismo, uma nova e radical utopia.   Nunca como hoje foi tan importante identificar e sublinhar as diferenças entre um e outro, sob pena de andarmos ás escuras no debate.   A palavra de ordem já nao é o clássico “laissez-faire”, que restringia o espaço público, fixando os límites do Estado e deixando um espaço livre para o mercado.   Já nao é a racionalidade económica privada de um lado, e a racionalidade política, o interesse público, do outro.   Pelo contrário, agora trata-se de “diffuser le marché partout”.   A ambiçao é de erigir em lei – quase diriamos em única lei – a lei do mercado.   Já nao deve ser o Estado, mas o mercado a agir como regulador geral.   Sao já os mercados que decidem quem é e quem nao é.político responsável.   Sao eles, e nao o povo, que avaliam e que dao notas aos políticos.   A xulgar pelos recentes resgates bancários a funçao do Estado parece agora nao ser regular o mercado, mas servir o mercado.   Nao se trata apenas de impor o mercado, trata-se de tudo explicar com o mercado.   Nesta nova utopia, a economia há muito que deixou de ser a ciência ocupada com um objeto determinado – a concorrência, a fixaçao de preços, o investimento, o lucro – para se transformar na ciência que pretende explicar todo o comportamento humano.   Ela já nao pretende apenas esclarecer a produçao, a eficiência, o crescimento – ela é a ciência das “escolhas racionais”, quer dizer, só a economia é racional.   A vitória da Razao, afinal era isto: a ciência económica como ciência total, para nao dizer totalitária.   Desde que Gary Becker publicou o seu livro “The economic approach of human behavior” (1976) que as mais simples decisoes, como ter filhos ou nao, casar ou nao, drogar-se ou nao, passaram a ser vistas como sendo do âmbito da nova ciência económica, já que, afinal, dependem apenas de um cálculo custo-benefício, mais ou menos intuitivo, que o novo “homem económico” faz a todo o instante.   A partir de agora, a clássica questao sobre “o que é a boa açao?”, que desde sempre pertenceu á filosofia moral, passa a ter resposta no cálculo económico, aquela que for mais vantajosa para mim.   Á mao invisivel sucede o cálculo pessoal invisivel.   Recentemente, uma revista semanal, num louvável esforço para melhorar a imagem de um sisudo ministro das Finanças, resolveu contar um jovial episódio: este, num dia menos atarefado, propôs aos seus colaboradores passar o intervalo de almoço a aplicar algumas equaçoes econométricas ás máximas kantianas.   O que a revista nao sabia é que a história era para levar a sério.   De facto, para que precisamos de Kant quando temos toda a ciência económica para resolver os dilemas morais e explicar o comportamento humano?   Nas últimas décadas, pudemos ver como a linguagem económica invadiu áreas da vida coletiva, mesmo aquelas que considerávamos mais nobres e preservadas das consideraçoes egoísticas ou do interesse próprio.   Nos anos oitenta, começámos a ouvir falar em mercado eleitoral, em consumidor eleitoral, em produto eleitoral.   Sandel, no excelente ensaio “O Que o Dinheiro Nao Pode Comprar”, dá-nos conta desse avassalador movimento em que a lógica do mercado invadiu áreas sociais anteriormente tao afastadas do interesse económico que nos causa a estranha sensaçao de que tudo está á venda.   A lista dessas novas áreas de mercado é perturbadora.   Ela inclui a possibilidade de matar um rinoceronte negro em vias de extinçao na África do Sul; o direito a comprar o seguro de vida de uma pessoa viva, usufruindo do futuro reembolso por morte, tanto maior quanto mais cedo ela ocorrer (breve: apostar na morte); pagar a mulheres toxicodependentes para que se sujeitem á esterilizaçao com o objetivo de evitar bebés viciados ou vítimas de maus-tratos; o direito a poluir, cobrando-se 13 euros por tonelada métrica de C O2 emitido para a atmosfera, só para incluir também um exemplo de inspiraçao europeia.   E tudo isto, claro está, feito em nome das melhores causas, usando os mágicos e infalíveis “instrumentos de mercado”.   Um dos paradigmas deste novo tempo é o que se passa com o acesso do público ás comissoes do congresso norte-americano.   O método é – ou era – o clássico e democrático lugar na fila.   Entra quem estiver no lugar da frente da fila até a lotaçao estar esgotada.   Acontece que, nalgumas sessoes concorridas, lobistas diligentes tinham que passar várias horas na fila por forma a manifestarem aos congressistas o interesse pela sua atuaçao.   Eis  a oportunidade que o mercado esperava.   Empresas profissionais decidiram contratar pessoas sem abrigo para guardar lugar na fila e vendê-lo depois aos referidos lobistas, que, desta forma, evitam perder o seu precioso tempo.   Todos ganham, dizem – o sem-abrigo que passa a ter uma ocupaçao digna, a empressa que tem o seu lucro legítimo, o lobista sem horas mortas de espera, e até o congresso ganha, já que quem assiste é quem verdadeiramente tem interesse na sessao.   Assim parece, mas só parece.   Na realidade, alguém perde. E a perda maior, diz Sandel, é que assistir a uma sessao do congresso deixa de ter o valor democrático e simbólico que tinha.   A introduçao do valor mercantil corrompe o bem e degrada-o – já nao é a mesma coisa assistir a uma sessao do congresso.   O episódio devia convidar-nos a refletir: é isto que queremos?   Nao deveríamos trocar umas ideias sobre o assunto antes de avançarmos por este caminho?   Recentemente em Portugal, decidimos também começar a vender a estrangeiros o direito de aqui residir em troca de investimento, admitindo, pela primeira vez, em áreas de soberania estatal, um tratamento distinto – um para ricos, outro para as pessoas sem posses.   A pergunta faz todo o sentido: o bem que vendemos será igual ao que era?   Depois do dinheiro, o simbolismo do direito que, como País, concedemos para aqui viver, e que antes estava baseado em regras iguais para todos, será ainda o mesmo?   Duvido.  

JOSÉ SÓCRATES

 

DONALD TRUMP

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                    Porque vos alarmais?

                    Porque vos auto-flaxelais?

                    Porque rasgais as vestiduras?

          Se non passa nada!   Tudo vai seguir igual!   Talvez acaso um pouquinho pior!   Para que logo non se diga, que o Estado non cresce e avança, como bola colorida nas maos dunha criança.   Mas de resto nada, tudo estava previsto xá pelos sábios da nossa xeracion límite, aos quais non escapou a possíbilidade de que com estas xentes “democráticas”, o “Pato Donald” acabaria sendo presidente.    Com Donald, non tenhádes medo, que nada vai melhorar, tudo seguirá mal.   Recordai, que toda situacion mala é subsceptíbel de empiorar.   Sabei que, non há pior pecado que non seguir o abandeirado.   Donald é muito amigo de Putin, pode ser que se entendan, e acabem com todas éstas guerras dunha vez por todas.   No caso de Cuba, tampouco passa nada, xá o amigo Putin, se encargará de axuda-los a todos.   Non me sexan alarmistas, a sopapos tudo se arranxa.   Ánimo, que ó melhor nos unimos a Xibraltar, e tamém escapamos deste liberalismo económico europeo, aproveitando que anda um pouco coxo.

                   Animo, que podemos!!

Léria cultural

ALPORTEL

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                    Sai-se do concelho de Loulé e entra-se no de Sao Brás de Alportel e também na zona do barrocal, deixando para trás a zona da serra, começam a aparecer os primeiros pinheiros.   Alportel era um forte centro do negócio da cortiça, uma espécie de entreposto entre o Alentejo e o Algarve.   A serra já ficou definitivamente para trás começam a encontrar-se a vinha, os pomares de citrinos e oliveiras, entrando em Sao Brás de Alportel.   Depois de sair de Sao Brás continua-se por uma zona cada vez mais verdejante, na chegada a Faro grandes pomares de citrinos, nomeadamente limoeiros.   A actualidade vê-se num supermercado, porque de resto, esta zona estará pouco mais ou menos como há 50 anos, terras de cultivo, pomares de limoeiros, laranjas e estufas.   Á beira da estrada muros velhos escuros.   Um final sem honra nem grandeza.

A. M. N.

 

O BARROCAL

img_5758                    Para apreciar o Barrocal o melhor é andar quilómetros para sul  e parar no adro da igreja do Barranco do Velho.   Dai terá uma ideia muito mais precisa do que é o Barrocal,   afinal a transiçao de terrenos essencialmente xistosos para o calcário.   O termo Barrocal deriva das formaçoes calcárias chamadas barrocos que raramente ultrapassam os 400 metros de altitude.   Aqui o coberto vegetal é constituído por azinheiras, zambujeiros, e vao começando a aparecer árvores de fruto, cada vez em maior quantidade, á medida que se avança para sul, alfarrobeiras, figueiras e oliveiras.   É para guardar a memória das gentes do Barrocal da Serra, e presenciar o passado de uma comunidade que sempre viveu fundamentalmente da cortiça.

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CORTELHA

img_5757                    A aldeia serrana, nao é grande, mas tem genica.   Há um local de referência para comer e para ficar, a Casa dos Presuntos, que tem loja de presuntos, café, garrafeira, alojamento local com nove quartos e, do outro lado da estrada, uma bomba de combustível.   Esta Casa dos Presuntos é propriedade de duas irmas gémeas e de outro irmao, que já a herdaram dos pais que já a tinham herdado pelo que está na posse da família há mais de 100 anos, sempre com o mesmo nome.   Os pratos mais famosos sao a caça grossa (javali e veado) e o borrego que cozinham de muitas maneiras, sendo as mais nomeadas o ensopado e o borrego assado no forno.   Depois há o polvo e, no tempo dela a caça, perdiz e coelho.

A. M. N.

A SERRA DO CALDEIRAO

img_5760                    A nascente do Vascao situa-se na vertente nordeste do Cerro do Zebro, na freguesia de Salir, já na Serra Châ, este curso de agua é conhecido como Córrego do Vascao.   Este troço final da N2 que atravessa de Norte a Sul o Algarve e apenas tem pouco mais de 55 Km de extensao é o menos povoado de toda a estrada desde Chaves até Faro.   É também a mais deserta, já que as povoaçoes á beira da estrada sao muito raras, apenas Sao Brás de Alportel, parece ter uma feiçao urbana, sendo todas as outras de efectiva matriz rural.   Sao terrinhas pequenas, pobres, muito pobres mesmo, áridas, mas que mesmo assim, conseguem ter umas pequenas hortas ao pé da casa.   O miradouro do Caldeirao é um punto de paragem obrigatório.

A. M. N.

ALMODÔVAR

img_5754                    A paisagem mantém-se, com muita esteva.   Atravessando a povoaçao de Rosário a estrada começa a apresentar um belo tapete liso.   Ao Km 655,2 encontra-se a saída para as Minas de Neves Corvo, jazigo descoberto em1977 com mineral excepcional quer em qualidade quer em quantidade (cobre e zinco).   Há limite de velocidade, necessário por causa do gato pardo ou do gambuzino de três assobíos.   Pois que seja!   Também muitos vestígios de ocupaçao desde a Pré-história, que segundo muitos eruditos, aqui surgiu a primeira escrita no território do que é hoje a actual Europa Ocidental, chamada como Escrita do Sudoeste.

A. M. N.

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CASTRO VERDE

img_5751                    Depois seguem-se retas e mais retas e ao kilometro 631 entra-se no concelho de Castro Verde, que está situado no coraçao do chamado Campo Branco, por entre as planícies do Alentejo que encostan á serra do Caldeirao, embora a montanha só se sinta a sério com a entrada no concelho mais a sul, o de Almodôvar.   Com uma área de 567,2 Km2 e uma populaçao aproximada de 8000 habitantes, distribuída em cerca de uma vintena de localidades de pequena e média dimensao.   A paisagem é pouco acidentada, como maioria  mesmo muito plana, e uma altitude média a rondar os 200 metros.   Os solos sao pobres, por isso a agricultura é bastante limitada, tendo sido uma autêntica desgraça ecológica a campanha do trigo no tempo do Estado Novo.   Nao só porque a produçao era baixíssima, mas porque provocou a erosao da muito fina camada arável.   Para se ter uma ideia mais rigorosa, apenas 0,05% dos solos do concelho sao classe A, e mais do 80%, solos que apenas sao aconselhados para pastagens e montado de azinho e sobro.

A. M. N.

COMER EM ALJUSTREL

img_5755                    O Restaurante Fio D’Azeite, fica mesmo no centro da vila, no rés-do-chao do Hotel Villa Aljustrel.   e é uma referência gastronómica no concelho de Aljustrel.   Destaque para as migas á alentejana com a carne de alguidar ou a perna de javali estufada em vinho com castanhas e maça reineta.   Nos peixes, nao há que enganar com o polvo salteado em azeite e alho, acompanhado por meia desfeita de batatas e tomate.   Éstas mençoes sao reductoras, porque a oferta é bem mais  extensa, privilegiando sempre os productos da regiao, representando a riquíssima gastronomia alentejana, desde a entrada, até á sobremesa.   O pessoal de sala é competente e o chefe de sala pode aconselhá-lo bem.   A oferta é boa e pensada para casar com os sabores da terra.

A. M. N.

ODIVELAS

img_5750                    Até Almodôvar sao retas e estrada plana.   Depois até á entrada no Algarve, é a estrada das 365 curvas.   Um belíssimo troço para quem gosta de conduzir.   Chegamos a Odivelas, a sede da freguesia, necessário é subir porque a aldeia se desenvolve toda lá em cima, no alto do cabeço.   É terra pequena com uma particularidade que até pode ser novidade mundial:   os troncos das oito árvores da praça central, estao vestidas com trabalhos de tricot, creio que executadas pelas idosas do Centro de Dia. 

A. M. N.

OS ESCRAVOS DO TORRAO

img_5748                    Conta-se que foi na área da actual freguesia do Torrao, mais propriamente em Rio de Muinhos, lugar a sul da freguesia, o primeiro local em Portugal Continental onde foi utilizada mao-de-obra escrava, com negros vindos de entreposto da feitoria portuguesa do Senegal, corria o século XV.   A razao principal deste comércio de escravos para a zona foi a alta taxa de mortalidade verificada na zona pantanosa de Vale do Sado por causa das febres ou sezoes, que mais nao era do que o paludismo, nos campos onde a heranza árabe favorecia o plantio de arroz.   A introduçao nos rios de um pequeno peixe que comia os ovos e larvas dos mosquitos, e a utilizaçao em larga escala, de DDT (quimico que posteriormente  viria a ser prohíbido) disminuíram a incidência da malária em Portugal, que todos os anos ceifava dezenas de milhares de vidas.   Há quem diga que após tantos séculos ainda há traços desses antepassados negros que se foram cruzando com habitantes locais, visíveis em cabelos encrespados, nariz mais largo e pele mais escura.

 ” Quem quiser ver moças, da cor do carvao, vá dar um passeio até Sao Romao.”

A. M. N.

 

A JAULA DE AÇO

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                    O que me leva a revisitar o tema do carisma e a obra de Weber é o regresso do clássico confronto – que me parece evidente na política contemporânea – entre a razao burocrática e a razao política.   Na sua trilogia da legitimidade política, o sociólogo identifica três fontes: a tradiçao, a legal/racional e a carismática.   A tradiçao foi e é a fonte de legitimidade mais persistente do poder político.   Weber nao o esquece.   No entanto, parece evidente que a construçao do conceito de legitimidade carismática nao é usada fundamentalmente como  contraponto, senao como oposiçao, á racionalidade legal e burocrática que caracteriza o poder típico dos Estados modernos: “…  nas administraçoes de massas, é sempre um corpo estável de funcionários dotados de formaçao especializada que forma o núcleo do aparelho e cuja “disciplina” é uma condiçao absoluta de sucesso”.   No fundo, é como se estivesse a ver de longe o que o tempo atual nos trouxe: o regresso do velho e clássico combate entre duas forças.   De um lado, o poder impessoal dos aparelhos administrativos do Estado; do outro, a vida pública democrática, com o que ela tem de intransigentemente pessoal, quer na seleçao dos dirigentes, quer na sua responsabilizaçao.   No espírito do tempo, esta é, sem dúvida, uma questao política central.   O que se tem passado nestes anos de crise com o projeto europeu coloca-nos perante o tópico decisivo da legitimidade política exatamente nesta dicotomia: poder burocrático ou poder popular; saber técnico ou decisao política; ou ainda, para usar o dizer de Weber, político de profissao ou político de vocaçao.   No fundo, trata-se do regresso a um dos temas clássicos da filosofia política: democracia versus tecnocracia.   Quem deve governar?   Quem mais sabe ou quem o povo escolhe?   O primeiro sinal veio da Grécia e da heterodoxa proposta de Papandreou de convocar um referendo sobre o programa de ajuda ao seu país.   Pagaria tal heresia com a demissao.   Logo depois, quando o controverso primeiro-ministro Berlusconi, acusado de fragilizar a imagem do seu país junto dos mercados, foi substituído pelo senhor Mario Monti, antigo abridor de portas do banco Goldman Sachs, tudo ficou claro.   Afinal, os mercados limitavam-se a dizer aos políticos qual a margem de manobra disponível para o poder público, e aos povos qual o grau aceitável para a escolha democrática.   Tudo o que nao caiba neste espaço de “responsabilidade” é classificado como irrealista, ou melhor, como populista, termo preferido pela oligarquia tecnocrática para exprimir a sua desconfiança sobre seja o que for que possa agradar ao povo e deixar claro o seu desprezo por aqueles que nao param de chamar a atençao para a difícil situaçao em que fica o critério da legitimidade democrática com tal subordinaçao do político ao finançeiro.   É neste quadro que bem se compreende a desconfiança desses tais mercados sobre o carisma político individual, sempre suspeito de subversivo e iconoclasta e sempre tentado a levar demasiado a sério a vontade e o poder popular. A preferência vai para os homens de aparelho com “competência técnica” e responsabilidade.   A estes, Bourdieu traçou, sem condescendência, um perfil cruel:   “…  têm sucesso nao porque sejam os mais vulgares mas porque nao têm nada de extraordinário, nada para lá do aparelho, nada que os autorize a tomar liberdades para lá do aparelho, a fazer espertezas”.   Homens seguros, sim.   Sem o perigo da creatividade, da indeterminaçao e da insubmissao que o carisma sempre mantém por perto.   Na frente económica, ou mais propriamente financeira, as decisoes parecem ser tomadas por um governo de ninguém – ninguém a quem pedir contas, ninguém a quem responsabilizar.   Só quatro anos depois do início da chamada política de austeridade o Banco Central Europeu adota, finalmente, a política monetária expansionista que os Estados Unidos aplicaram desde  o início da crise.   O rasto de desolaçao económica e de desemprego fica como marca da intransigência alema.   A clivagem e o ressentimento norte-sul, centro-periferia nunca foram tao visíveis.   Qualquer referência á coesao e á convergência económica é vista como anacrónica e irrealista, apesar de figurar nos Tratados.   Para já nao falar no modelo social europeu, outrora motivo de orgulho e que, agora, parece ser encarado como a fonte de todos os males.   A impressao que fica é a de um projeto que, em vez de avançar passo a passo como gostávamos de dizer com orgulho, recua agora passo a passo.   No entanto, impoe-se perguntar: quem tomou estas decisoes?   Quem votou por elas?   E talvez mais importante: quem responsabilizar?   Na verdade, há muito que as principais questoes políticas foram sendo retiradas aos representantes do povo, aos eleitos, para serem entregues aos aparelhos técnicos de regulaçao – as chamadas “entidades administrativas independentes”.   O critério para tal proceder é provocatoriamente claro: deve subtrair-se ao domínio político, e até ao espaço público de debate, tudo o que é verdadeiramente importante.   É assim que a política monetária, o regime de concorrência, a regulaçao do mercado de capitais, a política energética, as telecomunicaçoes, e agora até a escolha de dirigentes da administraçao pública têm sido subtraídos á arena política da escolha democrática, para migrarem para o terreno da técnica e serem entregues aos aparelhos administrativos pretensamente independentes.   É de certa forma o ideal tecnocrático de uma governaçao sem política que regressa.   Para este caminho, muitos têm contribuído, á esquerda e á direita, dada a perversa popularidade de tal ideia: a ilusao de que, para qualquer questao política, há uma só resposta certa que só pode vir dos especialistas e cuja descoberta dependerá do esforço que pusermos em descobri-la.   A utopia da verdade tecnocrática foi criticada por muitos, mas talvez ninguém como Berlin tenha denunciado com mais ardor o enraizado  vício do raciocínio ocidental, exigindo que para todas “…as verdadeiras questoes haja uma resposta verdadeira e uma só, sendo todas as outras erradas, pois de outro modo nao seriam genuínas questoes”.   A profunda demagogia de esconder opçoes políticas atrás da razao técnica burocrática e do saber dos especialistas é tao antiga como enganadora e nao esconde a dificuldade em conviver com a ideia da pluralidade de respostas e de soluçoes.   A crítica dos dias de hoje ao chamado “pensamento único” pertence a esse debate tao antigo.   Acontece que a maior parte, se nao todas as decisoes que estao em causa, nada têm de técnico, mas envolvem, isso sim, escolhas e juízos sociais da maior importância que ganham em serem objeto de discussao racional no espaço público e em serem decididos com base em escolhas políticas claras.   A ideia da ausência de alternativa ou de um saber técnico dominante nada tem de novo e nada tem de inocente: “…enquanto espírito cristalizado, a máquina nao é neutra; a razao técnica é a razao social que em cada época domina”.   A fingida neutralidade nao esconde a desconfiança democrática: entregues ao saber técnico, afastam-se asstm das áreas importantes da governaçao as possibilidades de políticas “demagógicas”, próprias de quem representa a povo.   Mas, mais uma vez, perante quem respondem esses técnicos e especialistas?   A quem prestam contas?   Independência, dizem: nem crítica, nem censura, nem reprovaçao.   Poder sem rosto e sem controlo.   É difícil negar que o que está a acontecer é sinal claro de uma tendência para sobrepor os aparelhos “técnicos” das finanças mundiais á democracia, ou seja, á possibilidade de o povo escolher os seus dirigentes e exprimir a  preferência pelo caminho que deseja prosseguir.   A questao, uma vez mais, é essencialmente democrática: qual é, afinal, o papel do povo?   Como aceitar o papel de mero espetador da açao da nova oligarquia que comunica por press release, por avaliaçoes periódicas, e que, no fundo, entende que nao deve explicaçoes.   No final do seu livro sobre a ética protestante, e escorregando do seu próprio princípio de neutralidade axiológica, Weber nao resiste a exprimir os seus sentimentos, descrevendo de forma sombria o que pressente ser o futuro do mundo condicionado pelo capitalismo sem regras e pela impessoalidade burocrática.   Diz ele:  “O possante cosmos da ordem económica moderna, ligado ás condiçoes técnicas e económicas da produçao mecânica,  determina hoje com uma força irresistível obrigatória o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem no seio desta maquinaria (…). Porventura essa prescriçao continuará até que o último quintal de carburante fóssil seja queimado.”   Mais á frente, num tom fatalista e desencantado de quem já nada espera, fala de destino inexorável, de novos profetas ou de petrificaçao mecânica.   Porventura ainda nao tinha visto nada.   Um século depois,  o sentimento dominante nas sociedades europeias é de uma total submissao a forças impessoais que nao conhecemos e com as quais nao se pode nem dialogar nem responsabilizar.   O mercado, a dívida, a finança, a crise e o desemprego impoem-se como um destino inevitável e impiedoso.   A célebre fórmula da “jaula de aço”, como símbolo da soberania popular esmagada pela fria e implacável burocracia financeira, prosseguindo, com pretensa superioridade técnica, o seu cálculo e o seu interesse, nunca pareceu, como hoje, tao apropriada e atual.   Se vem de longe, a luta entre a tecnocracia e a democracia está também longe de estar acabada.

JOSÉ SÓCRATES

ERIO

img_5747                    Para quem for mais distraído e nao reparar nas placas é capaz de atravessar do distrito de Évora para o distrito de Beja sem dar conta de que passou pelo distrito de Setúbal.   Creia que também aqui há razoes geológicas para esta ponta do distrito de Setúbal (concelho de Alcácer do Sal e freguesia do Torrao) se prolongar para o Leste, intrometendo-se entre os distritos de Évora e de Beja.   Geólogo amigo disse-nos que há realmente diferenças, porque enquanto os solos da freguesia de Alcáçovas, sao xisto-argilosos, os da freguesia do Torrao sao vermelhos calcários, enquanto imediatamente a sul, na freguesia de Odivelas, concelho de Ferreira do Alentejo, os solos sao vermelhos férricos.   Já tinhamos visto um caso semelhante, quando uma ponta do distrito de Santarém (concelho de Coruche, freguesia do Couço) entra pelo Alentejo  dentro, entre o distrito de Portalegre e o distrito de Évora, intrometendo-se entre os concelhos de Ponte de Sor e Mora.   A estrada é feita de longas retas, ladeadas de pastagens.   Azinheiras e sobreiros vao começando a rarear, aparecendo algum pinheiro manso e depois cada vez mais oliveiras até se tornar na árvore dominante durante alguns quilómetros.   Assinale-se que durante os  catorce quilómetros que medeiam entre a saída de Alcáçovas e a entrada no Torrao nao há uma única casa á beira da estrada. Torrao, vem de Torregem, que significa torre grande.   Na época islâmica, o nome era Hisn Turrus.   Parece que por volta do século V, a. C., na época da civilizaçao celta, o Torrao se chamava Erio.   Pois que seja.   Bernardino Ribeiro, autor de Menina e Moça, nasceu nesta vila no final do século XV.   

a. m. n.

DIFÍCIL É ESCOLHER

img_5727                    Manuel Azinheirinha, durante duas décadas trabalhou com os irmaos Fialho no seu conhecido restaurante de Évora.   Depois mudou-se para Santiago do Escoural onde abriu um restaurante de referência e que leva o seu nome.   A mulher complementa-o.   A sala é pequena nao levando mais do que 30 pessoas e a afluência aconselha que se faça marcaçao prévia.   O espaço é acolhedor, luminoso, com as paredes brancas e as toalhas e guardanapos de pano de uma alvura impecável.   Os petiscos de entrada sao uma tentaçao e os pratos restantes nao lhe ficam atrás.   Numa pequena amostra registamos os pezinhos de porco de coentrada, sopa de caçao, lebre de cabidela, javali estufado com puré de maça, perdiz estufada, bochechas de porco assadas no forno com migas de espargos.   Nas sobremesas, o doce de mel e nozes, encharcada ou manjar do príncipe.   Boa garrafeira com os alentejanos á cabeça.   Sobre tudo muito bem escolhidos.

A. M. N.

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FRANCISCO SIM SIM

img_5736                    Francisco Sim Sim Galvao, escrivao de Direito aposentado, serralheiro enquanto novo, combatente na guerra colonial, atleta federado de ténis de mesa aos 75 anos, avô de dois netos, aprendiz de organista e escritor iniciante, tudo epítectos com as suas próprias palavras.   Um girasol gigante á porta de uma pequena loja de presentes, brindes, linhas, brinquedos e outras bugigangas chamou-me á atençao e foi aí que conheci Francisco Sim Sim Galvao, que estava a tomar conta da loja da filha.   Contou-me milhentas histórias e foi por ele que soube que o apelido Sim Sim é o mais comum em Alcáçovas.   Vendeu-me um exemplar do romance de sua autoria Sexo e Realidades (Sinapis Editores, Lisboa), que el gentilmente nao se cansou de repetir tratar-se de pura ficçao, mas que cheira a autobiografia a léguas…

img_5726A. M. N.