UM ROUBO

103

          Foi numa noite medonha, cheia de água e gelada, que o Faustino assaltou a Senhora da Saúde.   Há tempos já que a ideia desse roubo o obcecava, mas a mulher e o demónio duma hesitaçao imbecil tinham-no afastado disso.   Ainda bem que o destino acabara por dispor as coisas de maneira a que ele pudesse finalmente realizar o sonho.   Punha-se a deitar contas á vida, ás casas da povoaçao onde lhe fosse possível arranjar meia dúzia de vinténs para matar a fome naquela grande invernia, e nada, a nao ser a Senhora da Saúde.   Mas é que nada!   Abaças era uma terra pobre.   Dinheiro , do contado, só o Albertino.   Infelizmente, ao Albertino, tudo menos mexer-lhe num gravelho.  Forte e valente como um toiro, ainda por cima dormia de caçadeira encostada ao travesseiro.   É claro que havia o recurso de alargar os olhos pelas aldeias vizinhas.   Sómente: além de o temporal tolher os passos ao mais honrado, como o ano ia de fome, todos viviam de olho aberto e de porta  trancada.   De resto, nao se sentia já com forças para repetir a façanha de Freixoedo.   Cinco costelas partidas sao muitas costelas.   Sem contar – e aqui  é que a porca torcia o rabo – com o aviso solene do juiz:   -Dou-lhe apenas quatro meses, atendendo a que já foi bem convidado e que é esta a primeira vez que aqui me aparece.   Mas nao volte!   De contrário, perca o amor á liberdade.   Ora, uma coisa é passar uns dias na cadeia. de Alijó, e outra ver-se um homem metido numa penitenciária a vida inteira.   Apertada por tal arrocho, a imaginaçao do Faustino sucumbia.   Até que,ressuscitada por aquele buraco no estômago que nenhum aguaceiro enchia, começou de novo a namorar a Senhora da Saúde, rica e desamparada na serra.   Nem juiz, nem testemunhas, nem o delegado a berrar…   Nada.   Decididamente, o grande tiro era ali!   Naquela noite, depois dum caldo que nem a caes, e de todas as demais hipóteses arredadas, a miragem voltou, mas já sem a indecisao das tentaçoes anteriores.   Nao havia que ver.   O sítio nao podia ser melhor; á porta, bastava-lhe um empurrao; o resto, quê?  Acender uma vela das do altar, forçar a fechadura da caixa das esmolas, encher  o bolso, e ala morena.

104

         A mulher, sem migalha de pao na arca e sem pinga de azeite na almotolia, sabia bem que o remédio habitual daquelas penúrias  era ir buscá-lo onde o houvesse.   Mas quando o homem, á meia voz, começou a repisar a ideia,  desaprovou mais uma vez o projecto sacrílego.   A outro lado qualquer, estava de acordo.   Á Senhora da Saúde, nao.   O Faustino nem a ouviu, ocupado como estava no labor de semear a boa semente na terra podre dos últimos escrúpulos.   Debruçado sobre as pernas, com os dedos dos pés a espreitar das meias rotas, continuou a aquecer-se aos tiçoes apagados, a chupar a pirisca do cigarro e a enumerar  uma por uma as mil vantagens do negócio.   Coisa realmente fácil, sem nenhum perigo, e que trazia a soluçao do aperto em que estavan.   Por ser capela?!   Valha-nos Deus!   O essencial é que na  caixa houvesse algum…   Ao menos cem mil réisinhos!   Ha?!   Pois nao teria sequer cem mil réis?!   Interpelava a companheira, que nao colaborava já de nenhum modo naquela luta.   Embrulhada no xaile puído,  aninhara-se quase em cima do borralho, e fechava os olhos.   O Faustino teve de responder ás suas próprias perguntas.   Cem mil réis, e a contar muito por baixo.   Até era ofender a Santa, supô-la com menos capital na arca.   Á medida que ia pondo na balança as justificaçoes do seu desejo, o Faustino via oscilar o fiel da decisao, e pender para o  lado que lhe convinha o prato reluzente da fortuna.   Nao havia que ver.   As coisas eram o que eram.   A evidência metia-se pelos olhos dentro.   Por volta da meia noite as derradeiras amarras da consciência acabaram de ceder.   Raios partissem as horas que gastara a pensar na morte da bezerra!   Há certas alturas em que a gente, em vez de miolos, parece que tem aranhas no toutiço!   Ergueu-se.   Do Faustino titubeante, quase a deixar fugir a sorte que tao generosamente lhe sorria, já nao restavan sinais.   Agora estava de pé um homem magro, baixo, de barba restolhuda e olhos de azougue, vivo, flexível, decidido como uma doninha.   A mulher nem dormia nem velava.   Continuava engrunhada no seu canto, distante, como se o frio a tivesse entorpecido ou uma grande dor silenciosa e funda a roesse por dentro.   Ele também lhe nao falou.   Ladrao agora duplamente culpado diante da desaprovaçao dela, foi á loja buscar os precisos e desapareceu na escuridao do quinteiro, sombra muda a esgueirar-se na sombra.

105

          O temporal bramia pela aldeia fora.   Ouvia-se a nortada a pregar nos braços dos castanheiros e as bátegas a cair nas estrumeiras encharcadas.   Um taró de repassar fragas.   Faustino, vencidos cautelosamente  os cem metros da quelha em que morava, meteu-se á serra.   Apesar de o vento galego o empurrar para trás, para o frio enxuto da casa, caminhava depressa.   Uma vez que encontrara forças para tomar a única resoluçao acertada, era preciso nao demorar.   Infelizmente, a Senhora da Saúde nao ficava logo ali.   Quase no termo de Valongueiras, distava de Abaças, uma boa meia hora.   Ainda por cima, caminhos maus.   Ou lajes com relheiras que lembravam rugas em coiro de atanado, ou entao saibro ensopado e atoladiço.   Trilhos escomungados!   Mas desembelinhava as canelas o melhor que podia, , e meia hora, que afinal queria dizer meia légua, passa depressa.   É questao de um homem ir deitando contas á vida enquanto as pernas passeiam.   Cem mil réis, na pior das hipóteses, estavam-lhe no papo.   Só muito azar.   Mas nao.   A Senhora da Saúde governava-se…   Nem havia outra tao agenciadeira nas redondezas…   Na carvalhada da Arca os pensamentos mudaram-lhe de rumo.   A tosca memória erguida pela morte do Joaquim Teodoro, assassinado naquele sítio, chamou-o a uma realidade mais dura.   O Joaquim Teodoro, ao cabo, era ladrao também.   Nao de caminhos nem de igrejas, é certo,  mas de roletas, que dá mais e sem nenhum trabalho.   Basta lume no olho e dedo.   Justamente o forte do Joaquim Teodoro…   Que habilidade!   Isso entao na vermelhinha nao havia segundo!   O mais pintado entregava-lhe ali o seu e o de quem calhasse.   Artes do diabo!   Mas o Videira, quando no dia da festa lhe passou para as maos o último tostao, jurou-lhe que no ano que vinha nao vigarizava ele mais ninguém.   Dito e feito.   E ali estava agora a alma do Joaquim Teodoro pintada a branco no granito, entre linguas de fogo, de maos erguidas a pedir um padre-nosso!   E se ele, Faustino, tirasse o chapéu e atendesse a imploraçao?   Um padre-nosso antes de roubar a Senhora da Saúde, tinha a sua graça!   Apesar de travado por estes pensamentos desconsolados, caminhava depressa.   E, á medida que a carvalhada foi ficando para trás, a imagem do Joaquim Teodoro começou a desvanecer-se.

106          Insensívelmente, todo ele ia aderindo á realidade erma e negra que o cercava.   Também onde o raio da Santa viera fazer o pouso!   Era mesmo desafiar um homem.   O pior é se,…   Mas nao.   A sorte dele havia de ser tao caipora, que encontrasse a caixa sem um vintém?   A esta íntima interrogaçao, os olhos responderam-lhe bruscamente que chegara.   A dois palmos do nariz viam-se as paredes da ermida a reluzir   Embora gatuno de profissao, pois que nao se podia chamar cesteiro a quem só lá de tempos a tempos fazia um cesto por desfastio, Faustino, mal deu de chofre com a capela, teve um baque no coraçao.   E parou.   Nunca assaltara nenhum lugar sagrado. Sempre era roubar a Senhora da Saúde!   Mas a hesitaçao durou um minuto apenas.   Molhado da cabeça aos pés,  o próprio organismo é que o impeliu para a frente, para dentro de uma casa com telhado.   Nao havia tempo a perder de maneira nenhuma.   Nem o corpo, nem o espírito lhe podiam consentir uma fraqueza em semelhante ocasiao.   Para diante é que era o caminho!   Num ímpeto, chegou-se á porta e meteu-lhe o ombro.   Pois claro, como tinha previsto…   Escancaradinha!   Com a respiraçao suspensa e todo num formigueiro, entrou de rompante no poço de escuridao.   Dentro, o primeiro impulso do seu instinto foi fechar a porta de novo.   Mas a razao, chamada a contas, discordou.   Homem, pelo sim, pelo nao, deixar o trânsito desimpedido!   Riscou um fósforo, de cabelos em pé.   Até se desconhecia!   Ninguém as calça que as nao borre, bem se diz lá!…   Na luz incerta que se fez, pôs-se a olhar febrilmente para todos os lados e a ouvir ao mesmo tempo, de orelha fita, o silêncio pesado da capela.   Felizmente, nada.   Imóveis e espantados, os santos pareciam surpreendidos, mas nao faziam um gesto para defender a moradia.   Realmente, todos de pau! Que sossego!   Chegava a parecer mentira que uma casa de Deus tivesse de noite um ar tao desgraçado.   Nos palheiros, ao menos havia ratos!   Deu alguns passos.   Como o fósforo estava no fim e já lhe aquecia os dedos, riscou outro.   Menos inseguro, subiu as escadas do altar de S. José, logo á entrada.   E, quase serenamente, acendeu a vela dum castiçal.      

17

          A  igreja clareou quanto  a luz pôde.   E, mais iluminada, tornou-se ainda mais simples, mais natural.  As imagens já nem sequer o ar atónito de há pouco conservavam; e o resto, francamente, sem nenhum ar divino.   Toalhas, bancos, jarras…  O trivial.   Tanta mortificaçao inútil!   Voltou-se.   A caixa das esmolas estava ao fundo, enterrada na parede que ligava o templo ao cabido.   Era do lado de fora, pela fresta cavada na cantaria que os devotos deixavam cair a  boa massinha.  Pinga que pinga…   Uma mina!   Com passos de lâ, chegou-se.   Caramba, seria que nao estivesse a abarrotar?!   Pôs a luz no chao, e meteu maos á obra.   Se calhar tinha que escaqueirar a tampa á martelada…   Mas nao é que a fechadura parecia de papelao e cedia ao cinzel sem resistência nenhuma?!   Tudo ás mil maravilhas…   Um mês de tripa forra njnguém lho tirava.   Desgraçadamente, a caixa estava limpa.   Ou fora roubada, ou a esvaziara o padre Bento na véspera, ou entao ja nao havia fé neste amaldiçoado mundo.     Ah! mas ele, Faustino, nao se deixava enganar assim.   Nao.   Tivesse a Senhora da Saúde paciência.   Lá  pouco dele, isso vírgula!   Vinha com boas intençoes.   Obrigavam-no, pronto: ia o que houvesse, e passava tudo a patacos.   Pegou de repelao no castiçal e avançou indignado para o altar mor.   Nao acreditava que no sacrário a miséria fosse também assim.   Era.   Os dois SS entrelaçados na portinhola queriam dizer apenas um buraco escuro, vazio, onde os seus dedos resolutos tactearam em vao.   Ladroes!   Filhos duma grande…   Nem ao menos o cálix!   O que vale é que havia ainda a sacristia para revistar.   E que nao estivessem lá os apetrechos devidos!   Ia á casa do do abade, que lhe havia de pôr ali o que pertencia á santa…   O cálix, a cruz, o turíbulo, tudo.   E a bagalhoça, claro.   Pouca vergonha!   Investiu pela sacristia dentro.   Queria ver quem levava a melhor.   Mas qual o quê!   Estava mesmo roubado.   Flores desbotadas de papel, tocos de círios, um crucifixo partido…   Que cambada!   Desanimado, pegou na luz.   Larápios!   Á medida que o desespero tomava conta dele, perdia o resto duma precauçao que  a prudência lhe aconselhara.   Falava alto, rogava pragas, caminhava pela capela abaixo com a indignada razao de quem andava na sua propría casa a verificar os danos dum assalto de bandidos!   Canalhas!   Até que chegou ao fim da nave.   Olhou ainda os altares num relance.   Os santos lá continuavam parados como há bocado, e a olhá-lo agora a modos de caçoada.   Sim senhor, uma linda figura de pedaço de asno que fizera diante deles!   Pôs o castiçal no chao, soprou á vela, puxou a porta e saiu.

 

19

 

           O temporal redobrara de fúria.   A atravessar o adro, com a desilusao a percorrer-lhe as veias,  é que via bem como a escuridao era cerrada e como a chuva lhe trespassava o corpo.   Porca de vida!   Um homem a fazer por ela, a aguentar no lombo uma noitada daquelas, para ao cabo dar com o nariz no sedeiro!   Na carbalhada da Arcâ já os ombros, de entanguidos, se lhe queriam meter pelo pescoço dentro.   Filhadinho!   A roupa ia-lhe tao colada ao corpo que parecia que era a pele.   Cadela de sorte!   Na curva, lá estava outra vez a alma do Joaquim Teodoro a pedir o padre-nosso.   Para que lambesse o Joaquim Teodoro!   Padre-nossos, padre-nossos, ia-se a ver, e a caixa da Senhora da  Saúde sem um vintém!   Ah!   mas o abade punha-lhe ali a massa e o resto com língua de palmo.   Oh, se punha!   Ás quatro da madrugada entrou em casa.   Como um pitinho!   A mulher lá estava ainda no mesmo sítio, calada, triste, longe da vida.   Nao lhe falou.   A escorrer água, gelado, foi direito á cama, despiu-se e meteu-se entre as mantas a bater os dentes.   Pela manha ardia em febre.   E daí a seis dias, depois de um cáustico lhe abrir no peito uma bica de matéria e de o barbeiro de Parada o ter desenganado, foi preciso chamar o confessor, a ver se ao menos se lhe podia salvar a alma.   Veio entao o padre Bento, manso, vermelho, tranquilizador.   Mas o Faustino delirava.   E mal o santo homem, de sobrepeliz, lhe entrou pelo quarto dentro, arregalou os olhos, inteiriçou-se no catre, apontou-o á mulher e aos circunstantes, e com a voz toldada da bronco-pneumonia, rouquejou:    

                     -Ladrao!   Prendam-no, que é ladrao!

MIGUEL TORGA

Deixar un comentario