Arquivos diarios: 29/07/2017

DOS SERES HUMANOS (ANTES DE SEREM CIDADAOS)

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                    Acabámos de ver que a filosofia de Hobbes se edifica sobre dous pilares básicos, estreitamente relacionados: toda a realidade reduz-se a matéria (materialismo radical) e todo o fenómeno resulta de uma concatenaçao de causas (mecanismo determinista).  Dois pilares a que nao renuncia quando se confronta com as questoes humanas, o que o leva a considerar o homem como um mecanismo cujas acçoes sao explicáveis apelando a causas materiais.  De facto, também concebe o ser humano como um autómato, cuja actuaçao se pode reduzir aos movimentos das suas partes:  “O que é na verdade o coraçao senao uma mola?  E os nervos, o que sao señao diversas fibras?  E as articulaçoes, senao várias rodas que dao movimento ao corpo inteiro, tal como o Artífice o construiu?” (Leviata, introduçao).  A antropologia de Hobbes entende-se melhor como reacçao ao dualismo de Descartes (nao crê que sejamos compostos por duas substâncias diferentes, corpo e alma, mas que somos exclusivamente matéria) e ás teses aristotélicas (Hobbes nao pensa que a nossa existência seja guiada por um “telos”, um fim ou propósito, mas que estamos imersos numa sucessao de causas necessárias; também nao considera que sejamos políticos por natureza, mas que a hostilidade rege as relaçoes sociais).  Mais adiante veremos em pormenor todas estas questoes.  O ser humano, como corpo em movimento na sua condiçao natural, é o tema principal do presente capítulo.  Neste contexto, “natural” tem duas acepçoes.  Por um lado, logicamente, refere-se áquilo que se encontra na natureza, neste caso á física e á biologia.  Por outro, também significa o oposto ao artificial; assim, a vida num Estado contrapôe-se á vida natural.  Através deste conceito de natureza, a fisiologia e a psicologia interligam-se com a ética e a questao do estado pré-político do ser humano.  Daí também o “antes de serem cidadaos” do título deste capítulo, que, como veremos na penúltima parte, nao deve ser encarado num sentido cronológico.  Neste capítulo, vamos também fazer uma aproximaçao a partir do direito, mais concretamente da constataçao inegável de que todos e cada um de nós resistimos a uma morte prematura, que Hobbes define como o direito natural de preservar a integridade física, isto é de a pessoa se proteger a sí própria.  Neste sentido, só é possível a vida em sociedade se esse direito for regulado por um poder soberano que obrigue a respeitar certas normas de paz, que denomina leis naturais.  Por outro lado, se a liberdade individual for ilimitada, a convivência converte-se numa anarquia dominada pelo caos e pela guerra.  Esta distopia hobbesiana tem origem na igualdade de todos os seres humanos, dado que, na sua opiniao, todos partilhamos a mesma capacidade física e mental.  O universo é composto exclusivamente por corpos em movimento e os homens nao sao excepçao.  O nosso próprio corpo é um organismo material que nos determina.  A nossa percepçao e o nosso pensamento também o sao.  Além disso, somos todos movidos pelas mesmas paixoes, apetites e aversoes.  Somos practicamente iguais.  Contudo, embora os nossos organismos e os seus mecanismos psicológicos sejam os mesmos, o objecto do desejo de cada um varia de forma muito considerável.  Somos atraídos pelo prazer e a dor repugna-nos, obviamente, mas aquilo que produz em nós uma e outra sao coisas completamente diferentes.  Hobbes sublinha em especial esta ideia ao apresentar a sua imagem do homem.  Mas antes de desenvolver a questao dos apetites, deveremos entender como somos capazes de descobrir as coisas que nos atraem ou repugnam.  Devemos, portanto, orientar a nossa reflexao para a forma como percepcionamos o mundo exterior.

 

ignacio iturralde blanco